O Ocidente passa por estes dias por uma fase interessante de debate ideológico, pela primeira vez desde 1989. Perspectiva-se que o futuro político a médio prazo será um equilíbrio entre socialistas, liberais e conservadores.

Esta divisão ideológica é porventura mais saliente na questão dos direitos cívicos. Socialistas observam desequilíbrios legais ou morais entre diferentes grupos sociais como opressão pecaminosa. Liberais procuram limar todas as arestas diferenciadoras até o sistema social meritocraticamente produzir diferenças morais. Conservadores justificam desequilíbrios legais ou morais como o resultado de legados ou tradições que se impuseram através das experiências cumulativas da sociedade em questão.

Se a nível filosófico as diferenças são facilmente categóricas, a nível sociológico os dados são menos claros. Nas recentes eleições de 2019, uma das observações mais interessantes foi discernir em que eleitorados os novos partidos anti-sistema ganhavam fôlego. Se é verdade que partidos como o LIVRE retiraram votos ao eleitorado do Bloco e do PS, o CHEGA! cresceu em zonas de classe média e média-baixa e a Iniciativa Liberal obteve ganhos em zonas de classe alta e média alta, à semelhança do BE.

Como se explica assim que as diferentes ideologias não correspondam ao nível sócio-económico do eleitorado quando essa tem sido a regra analítica durante as últimas décadas? A verdade é que o eleitorado é mais complexo do que uma análise superficial poderia sugerir.

Andrew Breitbart costumava dizer que a política se encontra a jusante da cultura e poderíamos acrescentar que a cultura está a jusante das condicionantes geográficas e climáticas. 

Porque analisar questões cívicas equivale a analisar os instintos normativos das populações, tomemos como exemplo a relação entre o Estado e a Igreja. 

No Médio Oriente, a falta de importantes divisórias topográficas fomentou, ao longo de milénios, a constituição de unidades políticas tribais. Comparativamente, na Europa, tivemos em vez disso unidades políticas territoriais, constituídas em torno de feudos monopolizando um só espaço geográfico. Como no Médio Oriente a circulação é praticamente livre, os laços políticos e éticos fortaleceram-se em torno de família e clãs, e não de território. Convém ainda lembrar que a falta de grande recursos alimentares aumentou alternativamente a importância do comércio, como fonte de riqueza. A consequência disto é que a fonte de legitimidade do poder político vertical nesta região não era a lealdade a um território mas sim um conjunto de normas éticas regendo os laços familiares e empresariais. 

Tendo tudo isto em conta, não é de surpreender que o plano espiritual predomine sobre o plano autárquico em termos de legitimidade política. O califa é uma autoridade religiosa e política mas o título significa ‘sucessor’, i.e. sucessor do Profeta, não do emir ou xeque local.

Na Europa, foi o imperador romano que decidiu converter a sociedade ao cristianismo e por conseguinte, tendo também em conta a realidade paroquial da sociedade europeia, o poder temporal tem muito mais destaque relativamente ao poder espiritual.

A cristandade ortodoxa, estando próxima da influência asiática de tipo colectivista, demonstra uma certa promiscuidade entre os dois poderes. Tradicionalmente o monarca lidera a Igreja e possui bastante poder discricionário na doutrina teológica e nomeação de clérigos, ainda que as duas instituições fosse suposto estarem separadas. 

Por conseguinte, algo como as ordens monásticas reformistas nunca se desenvolveu no oriente e ainda menos o fenómeno das ordens militares da era das cruzadas; o sistema, ainda que privilegiando o poder temporal, é ainda assim demasiado centralizado.

Ao longo da ascenção do Islão, as grandes capitais cristãs foram caindo uma após outra: Alexandria, Antióquia, Constantinopla. Restou Roma mas a cidade eterna tinha caído perante os exércitos bárbaros e perdido o seu estatuto de capital imperial. A prazo, o bispo de Roma, ameaçado por tribos bárbaras no norte da Itália e por incursões navais Árabes vindas do sul, acaba por entrar numa aliança com os grandes monarcas da Europa continental. Em troca da legitimidade religiosa concedida pelo mais importante bispo cristão, os senhores feudais de França e da Alemanha comprometem-se a salvaguardar a soberania do Sumo Pontífice: Reis ganham o título de Imperadores e o Papa ganha um exército.

Esta codependência não foi pacífica e foi testada por ambas as partes ao longo dos séculos mas daria origem a um equilíbrio entre as duas instituições que se tornou apanágio do mundo católico. Assim continuou até à eclosão das guerras religiosas na Europa, através das quais os protestantes se libertaram da autoridade papal.

A essência do protestantismo foi o pôr em causa a própria instituição da Igreja – uma entidade burocrática que uma leitura literal dos evangelhos não podia conceber. A ‘Reforma’ serviu para atomizar a comunhão com Deus ao nível mais básico: o do indivíduo. No fundo, a Europa germânica regressava às suas origens depois de um milénio de conversão utilitária aos preceitos de Roma. Tal como os seus antepassados vikings, a devoção abandonava os ritos formais e hierárquicos e deixava a cada indivíduo a responsabilidade pela salvação. Uma poética exibição daquilo que Max Weber apelidaria de ‘ética protestante’, contraposta à ética católica.

Chegamos assim ao encontro simétrico dos extremos que é o Islão e a Reforma. Um anula o político em favor do religioso e o outro anula o religioso em favor do político, num sincretismo iconoclástico absolutista partilhado entre o cidadão germânico e a multidão prostrada a Meca. Para usar uma metáfora agostiniana, na Jerusalém sem rédeas a apostasia é intolerável e na Babilónia libertina a integridade social é inexistente. Ambas reduzem ao mínimo o número de evangelhos pois o objectivo é obter a doutrina o mais asséptica e utilitária possível.

Um conceito como a santa trindade é-lhes perfeitamente estranho pois é incoerente: porquê criar redundâncias em algo tão fundamental como a origem da legitimidade divina?

Tais diferenças sociológicas têm repercussões em quase todos os aspectos da vida pública, desde níveis de corrupção a incidência de gravidez adolescente. Quando o ênfase recai sobre o político, este aspecto tende a ser mais resiliente e sustentável, e quando recai sobre o religioso, a cultura tende a ser mais duradoura, ainda que o seu governo não o seja tanto. Escândalos de corrupção governamental afectam o sul, escândalos sexuais envolvendo imigrantes afectam o norte.

Um bom exemplo de como a ideologia obedece a imperativos culturais é a apetência por diferentes versões doutrinárias de uma mesma filosofia.

Durante a Guerra Fria, o problema do comunismo era invariavelmente um problema católico e ortodoxo típico de repúblicas das bananas. O marxismo-leninismo altamente regimentado e adorador de santos laicos, exibidos em estandartes de paradas militares qual procissão pascoal, seguiu sempre uma via institucionalista muito apropriada a sociedades burocráticas.

Nos dias de revolução cultural que correm, no entanto, o marxismo-cultural tem muito maior impacto nas sociedades protestantes as quais acolhem mais facilmente uma doutrina consuetudinária frankfurtiana, carente de formalismo e derradeiramente desconstrutivista; um existencialismo calvinista tentando colmatar as falhas do romantismo mariano.

Os paralelos de uma III Internacional para papistas e uma IV Internacional para puritanos não são meramente líricos, pois os respectivos cleros têm sido convertidos a muitos dos respectivos axiomas: seja a Cantuária modernista ou a Santa Sé da teologia da libertação.

Más notícias uma vez que se o marxismo clássico já era problemático, o meta-marxismo actual é ainda menos característico de sociedades como a Portuguesa.

Os povos nórdicos definem-se como culturas altamente individualistas; certamente quando comparados ao resto da Europa e do mundo. Como eles colonizaram a Alemanha e conquistaram as ilhas Britânicas, a sua mentalidade viajou também para estes países.

Individualismo não significa egoísmo pois eles são capazes de decisões hierárquicas bem mais disciplinadas do que as dos povos do sul mas é, sim, indício de um sentido de responsabilidade pessoal raro na Humanidade. 

É um facto inegável que a sua mentalidade os distingue desde há pelo menos um milénio. Os vikings, por exemplo, conseguiriam dominar culturas e povos mais avançados tecnológica e politicamente. Os reis carolíngios acabaram por ter de os subornar para acabar com as suas incursões a Paris. No oriente, assim que os Vikings suecos desceram os rios da Rússia e apareceram no Mar Negro, os imperadores bizantinos apressaram-se a recrutá-los devido à sua disciplina em combate e lealdade incorruptível. Estas mesmas características definiram grande parte da história dos mercenários europeus na era moderna, nomeadamente no que diz respeito aos guardas Suiços ainda hoje presentes em Roma ou dos Landsknechts renanos utilizados por vários reinos até ao século XIX. Como contingentes mercenários de renome, nenhum povo do sul ou do leste foi tido em tão grande conta por tanto tempo, tanto quanto aqueles oriundos das culturas germânicas.

Na Europa de leste, a palavra eslava para Alemão parte sempre da raiz ‘niem’ que significa ‘calado’ e muitas palavras actuais trazem esta herança aos nossos dias tais como ‘franco’ para honesto ou ‘vândalo’ para arruaceiro. Quando queremos enfatizar disciplina utilizamos o adjectivo ‘germânico’ ou mesmo ‘prussiano’.

Algo igualmente importante a referir é o sentido de humor dos Alemães, o qual, como sabemos, é conhecido por não ser muito grande, sendo que eles são reconhecidos como tendo problemas em seguir narrativas e sátiras subtis ou com demasiadas nuances.

Tudo isto dá-nos uma imagem – ainda que subjectiva – de um povo pouco dado a subtilezas ou incerteza, uma cultura eminentemente categórica e lacónica, uma mentalidade maniqueísta de preto no branco, contrária a procrastinação e respostas incompletas, firme na prossecução de soluções …finais.

A revolução purificadora encetada pelos protestantes levaria a purgas de clérigos pela Europa fora e a vandalismos iconoclastas que destruiriam obras de arte de valor incalculável. Algumas das relíquias salvas da fúria protestante podem ser vistas ainda hoje na igreja jesuíta de São Roque em Lisboa.

É esta obsessão por consequências lógicas que é uma ameaça a Portugal e ao que o torna tão atraente aos turistas abastados: a autenticidade e beleza que foram esterilizadas no norte.

A obsessão internacionalista de organizações como a UE ou a NATO é uma corrida à consequência lógica da ética universalista tão omnipresente no discurso de cristãos-democratas e socialistas. Se somos todos iguais e o nacionalismo é uma força retrógrada, necessariamente os estados-nação terão de desaparecer em mais uma purga iconoclasta.

Rui Tavares no Público resume-o claramente: “Ser português, juridicamente, significa apenas ser cidadão reconhecido enquanto tal pelo estado português”. Se mais critérios não são tidos em conta para além de uma certidão processual, a nacionalidade deixa de ser algo de particular e distintivo, e passa a ser uma mera formalidade administrativa: ‘é cidadão da repartição da ibéria ocidental todos aqueles que lá residirem’, sobretudo sabendo nós o extremismo igualitário que orientará a decisão sobre quem é autorizado a residir. Miguel Duarte não é menos herói para Catarina Martins do que é para Marcelo Rebelo de Sousa…

Para Paulo Rangel isto é praticamente um facto consumado: “as fórmulas políticas também morrem e há de chegar um dia em que não vai haver Portugal. Isto pode parecer dramático, mas é real“, “vai haver um dia em que não vai haver portugueses“.

A consequência lógica da igualdade vai inclusive ao coração da individualidade humana com partidos como o Bloco a lutarem pela destruição dos ‘estereótipos de género’ com legislação que facilitaria as mudanças de sexo na mais tenra idade possível. 

A uniformização é imperativo da consequência lógica da igualdade, seja esta de pensamento, fisiológica ou material.

Voltando aos resultados das eleições de 2019, é importante discernir que embora as ideologias possam divergir, IL e BE são oriundos do mesmo eleitorado e os preconceitos culturais do seu meio social são os mesmos.

A vitória da superpotência protestante na Guerra Fria levou à evangelização dos seus preconceitos culturais para bem … e para mal.

A plataforma eleitoral da IL de desestatização económica e não-alinhamento cultural, verdadeira tabula rasa ética à la Steven Pinker e Sam Harris, é consequencialismo lógico de uma teleologia de atomização cívica ultra-individualista.

O Bloco, por sua vez, procura esta atomização, não através da neutralidade política, mas através da desconstrução beligerante de tudo aquilo que particulariza qualquer estrutura social. 

Estejam os socialistas e liberais na Foz ou em Cascais, o seu estatuto cosmopolita torna-os permeáveis a enculturação protestante de cariz maniqueísta e totalitarista.  Um totalitarismo próprio de forças que, desvalorizando a religião e os valores culturais, fazem da política uma autêntica religião cívica arrogando-se autoridade sobre todos os aspectos da vida privada dos cidadãos – incluindo, mais recentemente, autoridade de ajuizar o que é ‘ofensivo’ de acordo com os parâmetros do ‘discurso de ódio’.

Concomitantemente, o apelo do CH em eleitorados suburbanos e rurais, inclusive em zonas de forte influência comunista, indica uma identificação dos eleitores com os seus objectivos paroquiais e culturalmente coerentes com a identidade do demos, o qual o governo nacional é suposto servir …e representar.

A sensatez de compreender que o papel do Estado merece respeito mas que não deve tão pouco estravasar os seus limites tradicionais, implica a existência de um muito superior sentido de estado na direita conservadora do que à esquerda ou ao centro. Estes últimos, devolutos de empirismo, perseguem o progresso de forma dogmática e acabam sempre por perder a perspectiva do que é razoável.

Miguel Nunes Silva