Dois filmes cruzaram o meu caminho inesperadamente, neste tempo de clausura forçada. Dois filmes que se complementam, permitindo uma reflexão sobre o momento único que atravessamos.  

O primeiro foi “1984”, de Michael Radford, filmado em 1984, em Londres, nos locais e nos meses descritos por George Orwell.   

O universo de Orwell é bem conhecido, estudado e divulgado. Winston Smith, o personagem principal, vive em Oceânia, um superestado sob a ditadura de um partido, liderado pelo Grande Irmão, contra o quem Winston se rebela. Uma rebelião individual, sob a forma de um diário e de um amor proibido.  

Smith é um membro do Partido Externo (não pertence à elite do Partido Interno). Trabalha no Ministério da Verdade, revendo jornais, de maneira a que a informação histórica esteja sempre em consonância com a verdade do partido, que vai mudando consoante as necessidades da propaganda oficial. Isto é: escreve mentiras que sirvam para manter a narrativa do partido.  

É aqui que entra o segundo filme: “O mundo segundo Xi Jinping”, um documentário francês lançado em 2018 (disponível no Youtube, em português). É um filme sobre o Grande Irmão chinês que, tendo sido rejeitado nove vezes pelo Partido Comunista, se tornou no herdeiro de Mao-Tse-Tung. Sophie Lepault e Romain Franklin recorreram aos melhores especialistas sobre a China. 

Xi Jinping é filho de um ex-camarada de Mao, caído em desgraça durante a revolução cultural chinesa. Com a queda do seu pai, teve de enfrentar enormes dificuldades, que quebrariam a esmagadora maioria dos jovens. Mas ele resistiu a tudo e soube agarrar o poder pacientemente, passo por passo, subindo degrau a degrau na hierarquia, até conseguir o controlo total. É um ortodoxo e um verdadeiro “homem de ferro” (apesar de ser parecido com o Winnie The Pooh). E lidera uma ditadura comunista que leva a cabo uma guerra sem limites contra o resto do mundo, onde a propaganda é vital.  

A primeira questão na operação de branqueamento foi o nome do vírus. Um coronavírus irrompeu a partir de um mercado de animais na China, com o potencial para causar uma pandemia com efeitos devastadores. Por isso, é um “vírus chinês”. Ou, como já foi chamado, “o vírus do Partido Comunista Chinês”.  

Animais domésticos e selvagens amontoam-se nos mercados chineses, numa proximidade pouco saudável e nada higiénica. Os animais das gaiolas de cima despejam as suas fezes sobre os animais das gaiolas de baixo e os vírus transmitem-se. Foi o que se passou com a gripe aviária (a China enfrentou também um surto de gripe aviária no início do ano, em paralelo com a crise do vírus SARS-COV-2).  

Winston Smith, no pequeno cubículo onde trabalhava, revia a História. E o que fez a China, em 2019, defrontada com um novo vírus da sua responsabilidade? Tenta controlar a narrativa.  

Uma investigação recente do “The Washington Post” mostra como os responsáveis de Wuhan, onde eclodiu o vírus chinês, tentaram abafar o problema – e o porquê. Usaram a polícia para silenciar médicos (destacando-se o caso do oftalmologista Li Wenliang, que acabaria por morrer de Covid-19), ocultaram informação importante e restringiram os critérios de diagnóstico.   

A política anulou a verdade. Os burocratas de Wuhan encobriram o problema perante o todo-poderoso camarada Xi. Quando as coisas ficaram incontroláveis, o omnipotente camarada Xi interveio e combateu o problema de maneira a manter a imagem doméstica e internacional. Uma pandemia no interior das suas fronteiras poderia ser o maior problema para o regime desde os protestos na Praça da Paz Celestial (Tian’anmen), em 1989.  

A China possui meios poderosos para gerir a sua imagem e influenciar a opinião pública, nacional e mundial. A CCTV (Televisão Central da China), por exemplo, é um sistema de comunicação à escala global. Além de inúmeros canais, estabelece parcerias com outras emissoras, alargando cada vez mais a influência da propaganda chinesa. Foi o que aconteceu em Novembro do ano passado, com a Rede Bandeirantes, do Brasil. Entre as pérolas emitidas, encontram-se frases clássicas citadas pelo Presidente Xi… Na mesma altura, a CCTV estabeleceu um acordo de coprodução com outra emissora brasileira, a Globo. O que faz todo o sentido: quem pretender aperfeiçoar técnicas de propaganda, não vai desperdiçar o “Know-how” da Globo, a quem estudos apontam a responsabilidade pelo aumento da taxa de divórcios e da baixa da taxa de natalidade, no Brasil. 

Um outro artigo de um jornal norte-americano, o “New York Times”, mostra como o regime usou a máquina de comunicação ao dispor do Partido Comunista Chinês (PCC) com três objetivos: otimismo, proteção da imagem da China e disputa da origem do vírus.  

Chamou-me a atenção um vídeo de uma senhora chinesa, revoltada e banhada em lágrimas, queixando-se que não havia hospitais, nem camas e que a CCTV só passava mentiras. Fez-me lembrar um certo país, supostamente uma democracia, onde os responsáveis afirmam, candidamente, perante as câmaras de TV que os hospitais têm os meios que precisam para combater o COVID-19, quando todos os profissionais de saúde clamam que os meios são insuficientes (à data em que escrevo, mais de 850 profissionais foram infetados). Belíssimo exemplo do “duplopensar”, elaborado por Orwell: contar uma mentira e acreditar convictamente nessa mentira.  

A guerra da propaganda não é exclusiva do PCC. O Ocidente também tem máquinas de propaganda, com agendas estabelecidas. O Emanuel Goldstein dessas agendas, o arqui-inimigo do Grande Irmão, contra quem é canalizada a raiva da multidão e a quem é atribuída a culpa dos males do mundo chama-se Donald Trump.  

O uso da cloroquina para tratar Covid –19 foi feito pelo presidente dos EUA e logo um coro de vozes se levantou a desacreditar a opção. Muito havia para dizer sobre a reação enviesada da imprensa tradicional. Para piorar a situação, um casal do Texas teve a letal ideia de ingerir um detergente para aquários, com cloroquina. 

Factos: a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), do Brasil e a FDA (Food And Drugs Administration), dos EUA acabam de permitir o uso da cloroquina, em situações limitadas e em caso de emergência. A Direcção-Geral da Saúde autorizou, há poucos dias, o uso de cloroquina, entre outros medicamentos, para tratar a Covid-19.   

No mundo segundo Xi, as notícias falsas têm amplo destaque, enquanto as notícias verdadeiras – e boas! – são ocultadas, ou minimizadas. O mundo está repleto de Winstons Smith, que escrevem mentiras ao serviço do Grande Irmão chinês e de outros senhores.   

Nuno Capucha