Já recebi muitos pedidos na vida, mas poucos tão inesperados e difíceis quanto escrever sobre Olavo de Carvalho logo depois de seu falecimento.

Meu contato pessoal com ele se resume a uma troca de e-mails, há mais de 25 anos, e minha presença em duas palestras, no mesmo dia, na Faculdade da Cidade, no Rio de Janeiro, há mais de 20. Nunca estive entre os alunos próximos do professor, e durante muito tempo não fui, oficialmente, seu aluno.

Não digo isso para diminuir sua importância, mas, ao contrário, para ressaltar o quanto eu sou inadequado para a tarefa. Creio que seria melhor falar dele sem falar de mim, mas é impossível, porque tudo o que senti nesta semana é o quanto a presença deste gigante na minha vida a marcou. Soaria falso falar de outro modo.

Também soaria falsa qualquer tentativa de análise ou avaliação do conjunto da obra; aqui vão apenas recordações e impressões, que é o que posso fazer.

Descobri Olavo de Carvalho em 1996, quando, se não me engano, ele começou a escrever para o jornal O Globo. Ele era — e isto em uma época quando pessoas do quilate de D. Lourenço de Almeida Prado e João Ubaldo Ribeiro eram colunistas do mesmo veículo — um escândalo. Mais que isso: uma bomba. Religioso, anticomunista, erudito, o sujeito não se apoiava em autoridade ou cargo nenhum; sua base, no fundo, era ele mesmo, sua personalidade e a sabedoria de muitos anos de estudos e investigações.

Primeiro, descobri seu site, com os artigos maravilhosos e a enorme quantidade de autores recomendados (mesmo seus detratores mais biliosos não lhe negarão ter introduzido ou reintroduzido muitas obras importantes ao cenário intelectual brasileiro); depois, descobri seus livros (O Jardim das Aflições foi um soco; Aristóteles em Nova Perspectiva, um milagre; O Imbecil Coletivo, uma diversão; a Nova Era e a Revolução Cultural, um balde de água fria em muitas ilusões).

Eu o acompanhei pelas redes sociais (primeiro, no Orkut, depois no Facebook); ouvia com prazer e atenção o True Outspeak.

Por um tempo, por motivos que derivam, em última análise, da minha burrice, parei de acompanhá-lo por um tempo. Por causa disso, perdi o começo (e boa parte do meio) da maior obra de Olavo – o Curso Online de Filosofia (COF).

Mas não perdi a enxurrada de fofocas que se faziam.

E como houve fofocas ao longo dos anos. De todos os lados, de centros “católicos” a políticos famosos, passando por pessoas que se beneficiaram dele de vários modos. Ele era agente da CIA, era um louco furioso que fugiu do hospício, tinha um plano de islamização do Brasil, era polígamo, abortista secreto, falsário, violento com os filhos.

É óbvio que nem tudo poderia ser verdade ao mesmo tempo. Mas onde há fumaça, como dizem, há fogo!

O fogo, neste caso, são as labaredas da inveja. Com o tempo, a maior parte dos casos menos intrinsecamente absurdos foi se desmentindo sozinha, sem que o filósofo tivesse que fazer muita coisa. Algumas ele acabou demonstrando que eram mentiras. E, não, ninguém nunca desmentiu que ele fosse agente da CIA, mas escrevo para adultos.

Claro, uma fofoca em especial — eu uso o termo porque boa parte delas não chega nem a ser difamação — tem sido requentada e reutilizada ao longo dos anos, a de chefe de seita.

É compreensível. Um sujeito sem financiamento do governo ou de grandes organizações, sem uma universidade que o apoiasse, montar um curso de filosofia pela internet, sem fim nem possibilidade de obtenção de diploma, e conseguir milhares de alunos? Um sujeito que a classe falante brasileira quase inteira detrata, virar best-seller? Tem de haver algo errado.

O que está “errado” é que este sujeito tinha o que falar; tinha, para ficar numa palavra da moda, conteúdo.

Com muitos anos de atraso, eu me inscrevi no COF, que consiste, basicamente num senhor de idade a dar uma aula por semana, às vezes respondendo perguntas dos alunos, e algum material de apoio. Os alunos, hoje em dia, são maioritariamente de direita e em boa medida católicos, mas o curso é aberto a pessoas de qualquer orientação política, religiosa, sexual ou de outra natureza (e sempre foi assim; lá no fim da década de 90, conheci uns alunos que transcreviam suas aulas, e pelo menos 3 eram de esquerda, uma deles tendo sido filiada a um partido de esquerda).

A ideia que este tipo de esquema de ensino possa transformar essas pessoas todas em membros de seita é tão absurda que só pode sair, como sai, de professores que não conseguem ter o mesmo respeito, o mesmo alcance, e, o que é mais importante, produzir frutos tão bons. A começar pelo próprio filho, o professor Luiz Gonzaga de Carvalho Neto, a quantidade de pessoas, famosas e anónimas, que parecem ter se educado num nível muito superior ao médio brasileiro pela mão de Olavo de Carvalho é quase inacreditável.

Enfim, Olavo de Carvalho morreu. Deixou esposa, filhos, netos, amigos, alunos e admiradores. Mas deixou também uma obra extensa e relevante, cujos desdobramentos se farão sentir pelos anos à frente.

Mais que isso: num país com níveis de educação notoriamente baixos, em que há décadas estudar sem um propósito financeiro é mal-visto, ele formou pessoas que leem o melhor da literatura nacional e mundial, que discutem filosofia antiga e que tentam levar uma vida mais honesta e piedosa. Muitas pessoas reencontraram a religião por causa e por meio dele; ele suscitou conversões e retornos à Igreja Católica; ajudou muçulmanos, judeus e até budistas a viverem suas religiões e suas vidas de modo mais verdadeiro.

E, acima de tudo, deixou seu exemplo. Sigamos.

Marcos Monteiro
Professor no ICLS – Instituto Cultural Lux et Sapientia