Para quem tem interesse em aprender sobre o património histórico e religioso da cidade de Lisboa, nenhuma instituição assume maior destaque do que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML). A Santa Casa possui um património vasto e rico e oferece gratuitamente acesso a muito desse património, inclusivamente com visitas guiadas pedagógicas a todo o espólio.

É assim com profunda tristeza que assistimos à subversão da SCML por um grupo de ideólogos extremistas, que tem infiltrado a instituição durante os últimos anos.

Previamente à crise COVID-19, a SCML já tinha começado a promover visitas guiadas ideologicamente enviesadas. Uma delas foi o seu itinerário da baixa dedicado ao tópico da imigração e promovendo organizações de apoio à imigração. A SCML pode e deve promover para efeitos educativos, a exploração do seu património e da cidade de Lisboa mas uma visita guiada liderada por indivíduos sem nenhum tipo de formação em História, falando português com dificuldade e claramente sem qualquer interesse na história nacional, incapazes de responder a qualquer questão mais específica – que os membros do grupo abdicaram de colocar, como é costume, por respeito e dó – e promovendo ONGs obviamente politizadas, sem qualquer missão relacionada com História ou património; este tipo de iniciativa não é pedagógica, esta iniciativa é política.

Se a SCML fosse uma instituição privada, então ela não teria nenhum dever público de distanciamento ideológico mas não é esse o caso pois a SCML está sob a alçada da Segurança Social e usufrui de vários privilégios estatais. Nessa condição, a SCML representa e está ao serviço de todos os portugueses e não apenas dos da esquerda política… Mas se episódios como o descrito são subjectivos e podem ser passivos do benefício da dúvida, o último exemplo desta tendência é particularmente grave.

Na sua mais recente newsletter, a SCML promove a sua agenda cultural mas acrescenta também uma ligação para um artigo de Patrícia de Sousa Melo, uma académica da Universidade Nova.

O artigo Património cultural, museus e política: entre a neutralidade e o desconforto faz jus ao seu nome pois não hesita em discutir política e o dever institucional de neutralidade.

Na área da História e da Museologia, é justo dizer que vivemos tempos interessantes e que seguramente muito há a dizer sobre o assunto. Isto porque vivemos um assalto excepcional ao património histórico e à integridade académica.

O saneamento político que a extrema-esquerda marxista tem levado a cabo em universidades ocidentais é vergonhoso e evidente. Desde bustos e estátuas de fundadores de universidades ocidentais a serem removidos ou censurados, a académicos com opiniões alegadamente controversas a serem afastados ou mesmo despedidos. Em alguns casos, os ‘guardas vermelhos’ alimentados pela academia extremista ultrapassam todos os limites e causam mesmo o colapso ou suspensão do ensino. Noutros casos, instituições de prestígio tornam-se coniventes em vandalismo, violência e censura ideológica, como tem sido o caso de Berkeley e de muitas outras instituições de ensino nos EUA.

Se a componente científica está sob ataque, com os departamentos de História cada vez mais sob pressão, os monumentos e museus não estão seguramente a salvo tão pouco. No Chile activistas de esquerda queimam e vandalizam igrejas, em França vive-se uma onda sem precedentes de ataques a monumentos e ícones cristãos, na Rússia o grupo Pussy Riot foi condenado a penas de prisão precisamente por profanar igrejas e assediado fiéis, e no Médio Oriente a situação é de tal modo grave que termos como genocídio começam a ser empregues para descrever a situação de cristãos e outras minorias religiosas. Portugal não escapa aos problemas do mundo e também no nosso país temos assistido a ataques a monumentos por parte de activistas de extrema-esquerda.

Neste contexto, um artigo intitulado ‘Património cultural, museus e política: entre a neutralidade e o desconforto’ poderia levar alguns a pensar que não só o tema é pertinente mas que é precisamente a iconoclastia e extremismo ideológico que seriam abordados em tal texto, visto serem as principais ameaças à profissão e escola da museologia, e serem-no de forma nunca antes vista.

Captura de ecrã da newsletter da SCML.

Quem assim pensa estaria, claro, redondamente enganado. A instituição que viu uma estátua, à entrada do seu principal museu, ser vandalizada por activistas extremistas – e ainda por cima monstruosamente ignorantes, visto que o Padre António Vieira foi um dos pioneiros do combate à escravatura – decide promover aos seus subscritores um artigo, louvando e justificando a selvajaria revisionista a que assistimos na actualidade.

A autora vai ao cúmulo de empregar precisamente a mesma terminologia extremista e ignorante dos vândalos da estátua de António Vieira, quando excitadamente se refere a um seminário com o título “Descolonizar os museus: isto na prática…?”, algo que, aparentemente, os responsáveis da SCML, numa atitude altamente irresponsável e autodestructiva, acharam que seria bom publicitar…

Patrícia de Sousa Melo frisa que “tal não significa que se deva apagar e obliterar a História; trata-se precisamente do contrário, de tornar visível o que esteve oculto” mas a verdade é que nenhum museu ocidental – ao contrário de muitos pelo mundo fora – esconde seja o que for. Desde há décadas que o modelo do museu propagandístico desapareceu e certamente que tal modelo acabou em Portugal em 1974. A menos que a autora se refira ao ‘desconforto’ que as propostas de museus sobre António de Oliveira Salazar e o Museu dos Descobrimentos, causaram à classe política recentemente…

O zelo pela visibilidade é, no entanto, muito selectivo na perspectiva da autora pois se ela se diz adepta da não ocultação, já acha fabulosa “(…) a alteração das tabelas de mais de 220 mil peças do Rijsksmuseum [sic] em Amsterdão, visando a eliminação de terminologias difusoras de insensibilidade racial, propondo assim uma maior inclusão das suas comunidades”. É que a autora procura assumidamente o ‘desconforto’ mas só para alguns.

Naquela que será talvez uma das maiores autoincriminações por falta de rigor científico – ou maturidade emocional – que alguma vez li, a autora que é doutoranda em História da Arte, assume o seu “(…) desconforto e choque (…)” perante uma exposição factual sobre escravatura, que visitou na Holanda… Se isto não constitui a maior desqualificação por falta de profissionalismo, para lidar com espólio museológico, não sei o que poderia ser pior.

A deriva extremista e vândala descrita, defende a existência de museus como instituições ideológicas no Ocidente e pretende a transformação destas instituições em armas propagandísticas para a submissão cultural das sociedades europeias. Que ninguém sequer sonhe que o ‘desconforto’ defendido no artigo, alguma vez seria direccionado contra os crimes das sociedades colonizadas por europeus ou que a destruição da neutralidade institucional de entidades públicas, alguma vez serviria para propagar, igualmente, valores e mundivisão conservadores ou minimamente da direita política. É que caso não estejam educados, os ‘direitos humanos’ e a interpretação dos mesmos são monopólio das esquerdas.

Que se desenganem também aqueles que pensem ingenuamente que existe um mínimo de boa-fé nas eufemísticas propostas de ‘descolonizar’ os museus: na Suécia o ‘multiculturalismo’ já resulta na destruição activa de espólio medieval, para abrir espaço às exposições sobre ‘diversidade’, e nos EUA o Museu Afro-Americano da Smithsonian (entidade estatal) fez questão de explicar aos seus visitantes que a responsabilidade individual, o trabalho árduo, a família nuclear, a pontualidade e a boa educação eram características da ‘cultura branca’, ou seja, algo de indesejável e a purgar, pelo menos pela ‘cultura negra’; naquilo que foi um dos exemplos mais públicos e escandalosos do que George W. Bush apelidou do ‘leve preconceito das baixas expectativas’.

É gritantemente incompreensível que a SCML escolhesse voluntariamente associar-se a um artigo racista, intolerante, subversivo e em tudo associado aqueles que já atacaram a instituição fisicamente, em violação absoluta de todos os parâmetros da sua missão.

Se é certo que muito do património da SCML tem origem religiosa, os seus funcionários parecem ter olvidado que é aos agentes espirituais que cabe pregar e aos agentes políticos discursar, pois os agentes públicos têm a obrigação de isenção normativa. Quanto à salvaguarda do património, esta mais recente atitude revela uma total traição a essa missão, e é ainda conivente com o resvalar do fanatismo ideológico dos nossos dias para a normalização, não da preservação e estima pelo património público, mas sim da sua estigmatização e derradeira supressão.

Nada poderia envergonhar mais a Santa Casa.

Miguel Nunes Silva, consultor formado em relações internacionais, colunista sobre política para publicações nacionais e internacionais.