Se o governo da República permitisse às igrejas usar os mesmos critérios que faz aplicar às mercearias, permitindo uma “ocupação máxima indicativa de 0,04 pessoas por metro quadrado de área”, alguns portugueses escolheriam sair de casa durante esta semana santa para ir à sua paróquia ouvir longas e profundas passagens dos capítulos 18 e 19 do Evangelho segundo S. João que, além de apresentar um caso célebre na convoluta história da separação entre o Estado e o Templo, apresenta um estilo de liderança muito em voga nos nossos dias.

No entanto, sendo o nosso governo laico, pretensamente neutro em questões morais e religiosas, decidiu impor que o culto religioso, ao contrário do pão e da manteiga, não é um bem essencial, e que o espírito se deve submeter à saúde e necessidades da carne. Demonstrou, deste modo, a sua louvável inquietação com a nossa vida, com o que haveremos de comer ou beber, se bem que prescrevendo a todos os portugueses uma escala de valores pagã (cf. Mt 6, 25-34), que todos os crentes muito responsavelmente[nota 1] aceitaram. Ou não será o paganismo[nota 2]  uma religião?

Demonstrou deste modo a sua liderança, como já anteriormente havia feito noutras situações de crise. O que é liderança? É a capacidade de inspirar e motivar ação de acordo com certos princípios orientadores. Um estilo de liderança é aliás exemplificado precisamente nos capítulos 18 e 19 do Evangelho de S. João. Aí o evangelista descreve de modo muito gráfico as entradas e saídas de Pilatos, que demonstram a capacidade de um líder poderoso abdicar, passo a passo, de algumas das suas convicções, mesmo quando tem o poder máximo, civil, jurídico e militar, e mesmo sendo um político experiente e ambicioso.

Pilatos estava convencido que Jesus não merecia a morte (Jo 18, 38; Jo 19, 8 & 12), e suspeitava que os sacerdotes e escribas tinham interesses pessoais e mesquinhos, dos quais ele não queria ser cúmplice, para pedirem a sua execução (Mt 27, 18). E como se comporta nessa crise?

Sai, ao revés da praxe e contra as regras, da sede do governo para ouvir a queixa (Jo 18, 28). Depois “entrou de novo no edifício” para falar com Jesus (Jo 18, 33). Sai de novo para anunciar ausência de crime (Jo 18, 38) e, sem qualquer empatia para com sacerdotes e escribas, não compreendendo os seus receios nem os seus motivos, tenta negociar a libertação do acusado. E quantos juízes não são negociantes? Volta a entrar para, numa tentativa de compromisso, mandar flagelar o Inocente (Jo 19, 1). Depois, “saiu de novo” na ilusão de que flagelação satisfaz quem quer morte, para mostrar o seu serviço (Jo 19, 4). “Voltou a entrar no edifício da sede” mais uma vez quando percebe que os seus clientes não querem esforço, mas resultados (Jo 19, 9). Depois de falar outra vez com o Acusado, Pilatos volta e sair (sempre contra o protocolo), e retoma a negociação com os acusadores (Jo 19, 12).  Sete vezes andou Pilatos, o eng. Costa da altura lá no sítio, de cá para lá. O que falta aqui para termos um líder dos nossos tempos? Um focus group. E, também, uma ligação aérea entre Lisboa e Bruxelas.

Por fim, cansado de tantas andanças, Pilatos começou a ficar indiferente à justiça do caso e despreocupado com a autoridade do seu cargo, saturado daquele processo e indiferente àquele inocente injustiçado, empecilho anónimo—como milhares de outros—que o estava a fazer perder uma manhã e a gastar a sola das sandálias, até que chateado e agastado “entregou-o para ser crucificado” (Jo 19, 16). Pilatos estava convencido que Jesus não merecia a morte. Mas, para ele, havia coisas mais importantes do que a justiça e do que ordem social que a justiça implica. A começar pelo seu interesses pessoais.

Pilatos é um político e juiz que, com poder de vida e de morte, não estando preparado para uma crise anunciada (era habitual haver desacatos pela Páscoa em Jerusalém), prefere entregar um inocente à morte a ter de cumprir, até às últimas consequências, o dever do cargo. É pois um digno padroeiro para todos os nossos governantes. E de todos aqueles “dirigentes” que não estão ao serviço de um ideal de justiça, mas de um interesse ou de uma situação.

José Miguel Pinto dos Santos

U avtor não segve a graphya do nouo AcoRdo Ørtvgráphyco. Nem a do antygo. Escreue como qver & lhe apetece.

[nota 1] Responsabilidade: fardo descartável, sempre que necessário, para as costas dos astros, do destino, da fortuna, da má sorte, dos vírus ou do nosso próximo. Em contexto contemporâneo não é sinónimo nem de independência, nem de sensatez, mas de letargia. Termo usado, em Portugal, como elogio aos que preferem não tomar conta de si próprios. Em textos arcaicos este termo aparece como significando a capacidade ou obrigação de uma pessoa responder pelas suas palavras, atos e omissões.   

[nota 2] Paganismo: Religião de pessoas esclarecidas, racionais e modernas que preferem deidades plurais às monolíticas, especialmente de deuses DIY a que se possam associar ritos indígenas de florestas tropicais distantes e uma consciência ecológica.