Estamos a passar por um enorme distúrbio em massa. Em público e em privado, as pessoas estão a comportar-se de uma forma cada vez mais irracional, febril, parecida com uma manada. As notícias estão repletas das consequências. No entanto, embora vejamos os sintomas em toda a aparte, não vemos as causas.

Várias explicações têm sido dadas, geralmente envolvendo Donald Trump, o Brexit, ou ambos. Mas essas explicações não chegam à causa original do que está a acontecer. Por detrás de todas as loucuras do dia-a-dia (sobre raça, sexo, sexualidade, género e o resto) estão movimentos e eventos muito maiores. Até mesmo a origem desse distúrbio em massa é raramente reconhecida. Essa origem reside no simples facto de que estamos a viver um período de mais de um quarto de século em que todas as grandes narrativas sobre a nossa existência entraram em colapso.

A religião foi a primeira, e começou a cair a partir do século XIX. Depois, ao longo do século passado, seguiram-se as esperanças seculares de todas as ideologias políticas. Finalmente, na última parte do século XX, entrámos na era pós-moderna, definida pela sua perseguição às grandes narrativas.

Centenas de manifestantes participam no protesto “Women Demand Bread and Roses” organizado pela Marcha das Mulheres em Trafalgar Square, Londres, no dia 19 de Janeiro.

No entanto, a Natureza abomina o vácuo. As pessoas nas democracias ocidentais e ricas de hoje não podiam simplesmente ser as primeiras pessoas na história registada a não ter qualquer explicação para o que estamos a fazer aqui e nenhuma história para dar sentido à vida.

A questão de saber exactamente o que devemos fazer agora – para além de enriquecer e divertir-nos – teria de ser respondida por alguma coisa. A resposta que se tem apresentado nos últimos anos tem sido viver num permanente estado de indignação. Encontrar significado ao travar uma guerra constante contra qualquer pessoa que pareça estar do lado errado de uma pergunta para a qual a resposta só agora foi alterada.

A velocidade desconcertante deste processo tem sido causada principalmente pelos gigantes do Vale de Silicone (particularmente o Google, o Twitter e o Facebook). Eles têm o poder não apenas de direccionar o que a maioria das pessoas no mundo sabe, pensa e diz, mas também de ter um modelo de negócios que tem sido descrito como dependente de encontrar “clientes dispostos a pagar para modificar o comportamento de outra pessoa”.

Mas as guerras de ideias de hoje não são aleatórias – elas estão consistentemente a ser combatidas numa direcção nova e muito específica. E essa direcção tem um propósito que é vasto. O propósito – inconsciente em algumas pessoas, deliberado em outras – é nada menos do que instituir uma nova religião nas nossas sociedades.

A controversa estátua de Cecil Rhodes, imperialista britânico. Estudantes lideraram uma campanha Rhodes Must Fall

Embora os alicerces tenham sido estabelecidos ao longo de várias décadas, foi apenas desde a crise financeira de 2008 que houve uma marcha para o corrente de ideias que antes eram conhecidas apenas nas margens mais obscuras das universidades.

A interpretação do mundo através da lente da “justiça social” e da “política de grupos de identidade” é provavelmente o esforço mais audacioso e abrangente, desde o fim da Guerra Fria, para criar uma nova ideologia.

Até à data, a “justiça social” tem ido mais longe porque soa – e em algumas versões é – atraente. Até mesmo o termo foi criado para ser impossível de argumentar. És contra a justiça social? O que é que queres, injustiça social?

As atracções são óbvias. Afinal, por que deveria uma geração que não consegue acumular capital ter um grande amor pelo capitalismo? E não é difícil de entender por que razão uma geração que acredita que nunca terá uma casa própria pode ser atraída por uma visão ideológica do mundo que promete resolver toda a desigualdade. O lugar onde a justiça social encontra os seus guerreiros é a política de identidade. Isso atomiza a sociedade em diferentes grupos de interesse de acordo com o sexo (ou género), raça, preferência sexual e muito mais. Presume-se que tais características são os principais atributos relevantes dos seus detentores e que trazem um bónus adicional. Como disse o escritor americano Coleman Hughes, ele assume que há “um conhecimento moral elevado” que vem com ser negro, feminino ou gay. É por isso que as pessoas começam declarações com ‘Falando como um …’.

E esta nova religião é algo em que as pessoas vivas e mortas devem estar do lado correcto.

É por isso que há apelos para derrubar estátuas de figuras históricas vistas como se estivessem do lado errado e é por isso que defendem que o passado precisa de ser reescrito para servir qualquer grupo de interesse que deseje defender.

É na política de identidade que os grupos minoritários são encorajados a atomizar, organizar e atacar simultaneamente. Ligado a isso está algo que os guerreiros da justiça social chamam de “interseccionalidade” – a noção de que há uma hierarquia de minorias oprimidas e que a sociedade deve organizar-se com base na correção dessa situação.

Hoje, a interseccionalidade surgiu a partir dos departamentos de ciências sociais das universidades, agora é levada a sério pelos millennials e tornou-se embutida em todos os grandes grupos empresariais e governos.

A velocidade com que as causas da “justiça social” tomaram conta da vida quotidiana é impressionante. Frases outrora obscuras como “LGBTQ”, “privilégio branco”, “patriarcado” e “transfobia” são subitamente ouvidas em todos os lugares – embora, nas palavras do matemático Eric Weinstein, elas tenham sido “todas feitas há cerca de 20 minutos”. O policiamento destas questões é um fenómeno ainda mais recente. Os investigadores descobriram que frases como “sinto-me ofendido” só tiveram um pico de utilização a partir de 2013.

É como se, depois de ter calculado o que queria, a nova religião levasse mais meia década para descobrir como impor o seu credo aos descrentes. Mas fê-lo com um sucesso assustador.

Os resultados enlouquecedores podem ser vistos diariamente. É por isso que um estudo académico britânico que considerou os homens ricos e musculados mais atraentes poderia ser encabeçado pela revista Newsweek como: “Os homens com músculos e dinheiro são mais atraentes para as mulheres heterossexuais e para os homens homossexuais”. O que mostra que os “papéis de género” não estão a progredir.

É por isso que um programador completamente desconhecido no Google poderia ser despedido por escrever um comunicado que sugeria que alguns empregos técnicos atraem mais os homens do que as mulheres.

É por isso que o The New York Times publicou um artigo de um autor negro com o título: “Os meus filhos podem ser amigos dos brancos?”

E é por isso que um artigo sobre mortes de ciclistas em Londres escrito por uma mulher foi emoldurado através do título: “Estradas desenhadas por homens estão a matar mulheres”.

Essa retórica exacerba as divisões existentes e cria novas divisões. Com que propósito? Ao invés de mostrar como todos nós podemos dar-nos melhor, as lições da última década parecem estar a exacerbar a sensação de que, na verdade, não somos muito bons a viver uns com os outros.

Para a maioria das pessoas, a consciência desta nova religião tornou-se clara não tanto por tentativa mas por erro público. Porque uma coisa que todos começaram a sentir nos últimos anos é que um conjunto de armadilhas foi colocado na cultura. As primeiras armadilhas tinham tudo a ver com a homossexualidade. Na segunda metade do século XX, houve uma luta pela igualdade gay que, com razão, conseguiu reverter uma terrível injustiça histórica. Então, vencida a guerra, ela não parou. Na verdade, ela começou a transformar-se. GLB (Gay, Lesbian, Bi) tornou-se LGB para não diminuir as lésbicas. Depois, foi adicionado um T de ‘trans’ e um Q de ‘queer’ ou ‘questionamento’. Finalmente, esse movimento comportou-se – na vitória como os seus oponentes outrora o tinham feito: como opressores.

Há uma década atrás, quase ninguém apoiava o casamento gay. Mesmo o grupo de direitos homossexuais Stonewall não era a favor. Agora, é um princípio central do liberalismo moderno. Chumbar no teste do casamento gay (apenas alguns anos depois de quase todos terem chumbado) é como pintar um alvo nas costas.

As pessoas podem concordar ou discordar com o casamento gay. Mas mudar os costumes tão rapidamente precisa de ser feito com sensibilidade e pensamento profundo. No entanto, não nos envolvemos em nenhum dos dois.

Outras questões seguiram um padrão semelhante. Os direitos das mulheres também foram acumulados ao longo do século XX. Elas também pareciam estar a chegar a algum tipo de acordo. Então, assim que o comboio parecia estar a chegar ao destino desejado, voltou a encher-se de vapor e partiu a rugir para a distância. O que mal tinha sido disputado até ontem tornou-se uma causa para destruir a vida de alguém hoje. Carreiras inteiras foram destruídas e estilhaçadas enquanto o comboio avançava nos seus carris.

Carreiras como a do Professor Tim Hunt, de 72 anos, vencedor do Prémio Nobel da UCL, que foi destruída após uma piada numa conferência na Coreia do Sul, sobre homens e mulheres que se apaixonaram no laboratório.

Qual era a virtude de tornar as relações entre os sexos tão difíceis?

Por que é que, quando as mulheres tinham avançado mais do que em qualquer outra época, a conversa sobre “o patriarcado” saiu das margens feministas e infiltrou-se na cultura popular?

De maneira semelhante, o movimento dos direitos civis na América, que começou a corrigir o mais terrível de todos os erros históricos, parecia que estava a avançar para uma resolução esperada. Mais uma vez, perto do ponto de vitória, tudo azedou.

Assim que as coisas pareciam melhores do que nunca, a retórica começou a sugerir que as coisas nunca tinham sido piores.

A mais recente adição de uma armadilha, e a mais tóxica de todas elas, é a questão dos trans. Ela afeta o menor número possível de pessoas, mas, no entanto, é combatida com uma ferocidade e raiva quase inigualáveis. As mulheres que ficaram do lado errado da questão, incluindo as feministas notáveis como Julie Bindel e Suzanne Moore, foram perseguidas por pessoas que costumavam ser homens.

Entretanto, as mães e os pais que exprimem preocupações que há dez anos teriam sido consideradas de bom senso têm a sua aptidão enquanto pais a ser questionada. Pessoas que não vão admitir que os homens podem ser mulheres (e vice-versa) podem surpreendentemente agora esperar que a polícia lhes bata à porta.

Em Setembro do ano passado, um cartaz que continha a definição do dicionário “mulher: substantivo, mulher humana adulta” foi retirado depois de alguém ter reclamado que era um “símbolo que faz as pessoas transgénero sentirem-se inseguras”.

Todos sabem como serão chamados se os seus pés se prenderem nas novas armadilhas da sociedade. Parvalhão, homofóbico, sexista, machista, racista e transfóbico são apenas algumas. Para evitar estas acusações, os cidadãos têm de provar o seu compromisso com as causas da moda.

Como pode alguém demonstrar virtude neste novo mundo? Por ser “anti-racista”, claramente. Por ser um “aliado” das pessoas LGBT, obviamente. Sublinhando quão ardente é o seu desejo de derrubar o patriarcado.

E isso cria uma situação em que as declarações públicas de lealdade ao sistema devem ser feitas independentemente da sua necessidade. É uma extensão de um problema no liberalismo identificado pelo falecido filósofo político Kenneth Minogue como síndrome de “São Jorge na reforma”. Depois de matar o dragão, o guerreiro encontra-se a percorrer a terra à procura de lutas mais gloriosas. Com o tempo, depois de se cansar em busca de dragões cada vez mais pequenos, ele pode acabar por ser encontrado a brandir a sua espada no ar e a imaginar dragões.

Hoje a nossa vida pública está repleta de pessoas desesperadas para matar dragões imaginários. Em todas as grandes questões, um número crescente de pessoas, com a Lei do seu lado, agora fingem que todas as questões foram resolvidas, todas as respostas foram acordadas – e que nenhuma boa pessoa pode ter qualquer dúvida. Ora, o caso é muito diferente.

Cada uma destas questões é infinitamente mais complexa e instável do que as nossas sociedades admitem. No entanto, enquanto as infindáveis contradições, fabricações e fantasias dentro de cada uma são visíveis, identificá-las não é apenas desencorajado, mas policiado.

Por isso, pedem-nos que concordemos com coisas em que não podemos acreditar, e dizem-nos para não nos opormos às coisas a que a maioria das pessoas se opõe, tais como dar drogas às crianças para as impedir de passar pela puberdade ou permitir que os homens que se auto-identificam como mulheres usem casas de banho femininas. A dor que advém de se esperar que permaneça em silêncio sobre assuntos importantes e dê saltos impossíveis sobre os outros é tremenda, até porque os problemas são demasiado evidentes.

Como qualquer um que viveu sob o totalitarismo pode atestar, há algo humilhante e, eventualmente, destruidor da alma sobre ser esperado que concorde com afirmações que não acredita serem verdade.

Se a crença é que todas as pessoas devem ser consideradas como possuidoras de igual valor e igual dignidade, então isso pode ser tudo do bom e do melhor. Mas se é pedido para acreditar que não há diferenças entre homens e mulheres, racismo e anti-racismo, homossexualidade e heterossexualidade, então isso vai levá-lo à distracção. Essa distracção é algo de que estamos no meio e de que devemos tentar encontrar uma saída. Se falharmos, a direcção da viagem é clara.

Enfrentamos não apenas um futuro de atomização, raiva e violência cada vez maiores, mas um futuro em que a possibilidade de um retrocesso contra todos os avanços de direitos – incluindo os bons – cresça mais provavelmente.

Um futuro em que o racismo seja respondido com racismo, em que a discriminação com base no género seja respondida com a discriminação com base no género. Nalgum momento da humilhação, não há qualquer razão para os grupos maioritários não retaliarem exactamente com as mesmas armas que funcionaram tão bem neles próprios.

Douglas Murray

Data do artigo: 31 de Agosto de 2019

Data de tradução: 05 de Setembro de 2019

Fonte:

https://www.dailymail.co.uk/news/article-7415169/Religion-political-ideals-replaced-dogma-turned-beliefs-hate-crimes.html