Relatório Matic aprovado pelo Parlamento Europeu há duas semanas evidencia os rumos que já há muito a União Europeia decidiu tomar. O Relatório segue uma linha de raciocínio onde matar uma vida intrauterina é garantir a preservação de direitos humanos. A compreensão do direito humano quanto à autonomia de uma pessoa acerca de seu próprio corpo já é incoerente quando pressupõe a ideia de que uma mulher terá direito sobre o corpo de um terceiro, ao se falar de uma vida à parte, no caso, do próprio filho.

No âmbito dos acontecimentos de 2020, a preocupação principal é relacionada à negligência de cuidados médicos relativos à possibilidade de praticar abortos, e não em relação à possibilidade de ter acesso a medicamentos aprovados há anos. Pelo contrário, atribuem a possibilidade de utilização de determinados medicamentos a figuras políticas, o que gera repulsa para aqueles que discordam da figura política, quando, na verdade, quem prescreve medicações são os médicos.

Os ditos “valores da Europa” não são necessariamente partilhados por todos os Estados-membros, sendo inevitável trazer à memória o discurso final do Brexit, onde ficou demonstrada a primitiva intenção de apenas ter um mercado comum e não uma nova bandeira, uma nova nação, e valores que não traduzem o povo britânico. Quais as nações que realmente partilham de tais valores? Estaria restrito a uma Europa de poucos? Estaria restrito a interesses de alguns a ser imposto moral e socialmente a todos?

Relatório Matic aduz que “Os direitos sexuais e reprodutivos são reconhecidos como direitos humanos na legislação internacional e europeia em matéria de direitos humanos e as violações de saúde e os direitos sexuais e reprodutivos (SDSR) representam violações de direitos humanos.” A definição acerca do que é considerado direitos humanos sofre uma grave distorção quando passa a ser definido o aborto (crime contra a vida intrauterina como define o Código Penal português) na categoria de direitos humanos, é inevitável concluir que nesta interpretação, matar uma vida intrauterina, ou seja, a mais alta violação de direitos humanos, violação ao direito à vida é considerada proteção a direitos humanos.

A premissa falaciosa induz aos desatentos a defender uma enorme violação como algo bom e saudável, como se a diferença de idade entre uma vida e outra fosse suficiente para definir qual deve continuar e qual deve ser interrompida. E o mais grave de tudo é que abrir brechas como estas aos direitos fundamentais é algo extremamente preocupante, porque encaminha para violações maiores e a criação de um inconsciente colectivo totalmente deturpado acerca de valores básicos que preservam a humanidade.

O Relatório leva em consideração uma suposta investigação que evidencia equipas de ajuda em países latino-americanos que estariam a enganar mulheres. Observe bem que o Parlamento Europeu utiliza um texto elaborado por alguém que investigou uma associação no México, que num primeiro momento insinuava que poderia interromper a gravidez, mas, posteriormente, apenas oferecia apoio a mulheres com gravidezes indesejadas, orientando sobre as possíveis consequências de tais escolhas. Repare que o grave da história é preservar uma vida, enquanto que, se fosse mesmo para a efetiva morte intrauterina, estaria tudo bem.

No seu texto defende que: “a falta de informação e educação cientificamente exata e baseada em dados concretos viola os direitos das pessoas”, mas de onde surge uma educação cientificamente exata, de onde são colhidos esses dados concretos? É permitido questioná-los? É permitido comprovar quando estão errados? Essa educação é apenas baseada no que um grupo seleto decidiu considerar como verdadeiro, são conhecimentos baseados em dados concretos que permitem violar a vida, que acreditam existir vida em outros planetas, por existir bactérias, mas desconsideram vida, aquela que ainda está dentro do útero materno. O Relatório responde a esse ponto: “recorda que todas as políticas relacionadas com a SDSR se devem basear em dados fiáveis e objetivos de organizações como a OMS, outras agências da ONU e o Conselho da Europa”.

Os países que procuram preservar a vida humana, com legislações mais restritas quanto ao aborto, são definidos assim: “Considerando que os opositores aos direitos sexuais e reprodutivos e à autonomia das mulheres influenciaram significativamente a legislação e as políticas nacionais com iniciativas retrógradas adotadas em vários Estados-Membros, procurando prejudicar a SDSR, tal como referiu o Parlamento nas suas resoluções sobre o retrocesso em matéria de direitos das mulheres e de igualdade de género na UE e sobre a proibição de facto do direito ao aborto na Polónia, bem como o Instituto Europeu para a Igualdade de Género no seu relatório, de 22 de novembro de 2019, intitulado «Pequim +25 – Quinta análise da aplicação da Plataforma de Ação de Pequim pelos Estados-Membros da UE»; considerando que estas iniciativas e recuos prejudicam a realização dos direitos das pessoas e o desenvolvimento dos países e comprometem os valores europeus e os direitos fundamentais”.

Existe uma verdadeira caça aos países nos quais o aborto é proibido ou “dificultado por legislações muito restritivas”. Os alvos principais, dentro da União Europeia, são Malta e a Polónia, e o Relatório de Matic aduz que “O que suscita preocupações e exige uma resposta firme da UE é o retrocesso evidente em termos de direitos das mulheres, com o direito a um aborto seguro e legal a ser um dos principais objetivos desses ataques. A restrição do aborto tem consequências graves.” A restrição à prática da violação à vida intrauterina tem por consequência a verdadeira protecção ao direito à vida. Como é possível concluírem que as mulheres que são orientadas sobre todas as questões envolvidas na conduta do aborto sejam definidas como vítimas de desinformação? Como é possível defender que o fim intencional de uma vida é a perfeita compreensão e exata ciência sobre a vida e os direitos humanos?

A leitura completa do Relatório Matic é chocante e triste. O Relatório não tem força coercitiva (ainda) para os países membros, mas define e evidencia muito bem quais são os princípios e valores da União Europeia, que defende e prioriza o fim da vida humana e não respeita as convicções pessoais dos médicos que se recusam a praticar tal atrocidade, descredibilizam aqueles que orientam acerca dos riscos da prática até mesmo para a mulher, que estando grávida pretende matar o próprio filho. Insistem que somente ocasionará riscos à mulher, o aborto realizado de maneira clandestina, mas, mesmo aqueles que são feitos em países que o permitem também proporcionam riscos e graves consequências para a mulher. Omitem esses dados nas pesquisas e nas orientações e ainda alegam que a mulher é vítima de desinformação quando tem conhecimento de todos os riscos em fazer tal escolha.

O Relatório Matic “solicita aos Estados-Membros que revejam as suas disposições legislativas nacionais em matéria de aborto e as alinhem com as normas internacionais em matéria de direitos humanos e as boas práticas a nível regional, assegurando que o aborto a pedido seja legal na gravidez precoce e, quando necessário, mais tarde”.

O Relatório e, por assim dizer, a maioria dos deputados europeus “lamenta que, por vezes, a prática comum nos Estados-Membros permita que profissionais médicos – e, em algumas ocasiões, instituições médicas inteiras – se recusem a prestar serviços de saúde com base na chamada cláusula de consciência, o que conduz à recusa de serviços de aborto por motivos de religião ou consciência e põe em perigo a vida e os direitos das mulheres; assinala que esta cláusula também é frequentemente utilizada em situações em que qualquer atraso pode pôr em perigo a vida ou a saúde dos doentes”.

Pontos positivos ao texto aprovado ficam por conta do incentivo à amamentação e ao combate ao tráfico humano e às práticas de mutilação genital feminina, porém, de maneira geral, a inversão de valores e prioridades é enorme, sufocante e maltrata quem realmente defende os direitos humanos. Assusta a facilidade com que distorcem uma compreensão básica sobre direitos fundamentais à vida e ao direito de objeção de consciência.

Ressalve-se que, para quem aguenta ler todo o relatório, há no fim uma opinião minoritária que corajosa e adequadamente defende ser este relatório uma violação à própria Declaração Universal dos Direitos Humanos e aos principais tratados vinculativos, bem como a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e do Tribunal de Justiça da União Europeia, ao definir que o aborto seria um direito humano, quando, na verdade, esta previsão não existe no direito internacional. “Comprova a manipulação ideológica dos direitos humanos, de carácter universal e imutável, resultante de uma influência internacional que mina a soberania das nações, afetando a respetiva legislação. Atenta contra a liberdade, a igualdade e a dignidade das mulheres, ao contrariar a sua natureza dissociando a sua identidade do sexo biológico.” E por fim, a opinião minoritária de Margarita de la Pisa Carrión e Jadwiga Wiśniewska define que: “As 154 alterações apresentadas procuraram defender a dignidade das mulheres, no respeito absoluto pela vida e pela lei da natureza como base e garantia do exercício da sua própria liberdade e dos direitos humanos.”

Certamente, um Relatório que fosse aprovado com as alterações apresentadas seria uma melhor escolha, é evidente que ainda uma parte considerável dos europeus defendem os verdadeiros valores e princípios que preservem verdadeiramente a vida e a dignidade de todos os seres humanos. Saibam que ainda existem representantes que defendem tais princípios, saibam que ainda há aqueles que defendem a vida. Não se calem.

Suellen Escariz, Advogada e mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra.