“A última luta de gladiadores”, retratando São Telémaco no Coliseu em Roma. Joseph Stallaert (1890).

Na Roma antiga já havia touradas. Aliás, havia toiradas com toiros e touradas sem touros. Mas não foram os romanos que inventaram as primeiras. A organização de confrontos entre bovinos e humanos do sexo masculino para entretimento dos próprios, das fêmeas e de outros potenciais espectadores já era praticada na Grécia, na Mesopotâmia, na Pérsia e, vá-se lá imaginar, na Índia, cada qual com o seu estilo, antes de o ser na Roma republicana. À medida que a civilização evoluía, o confronto entre homens[1] e bestas[2] deixou de ser unicamente um assunto de sobrevivência para adquirir também um aspeto lúdico.

Mas, durante muito tempo, foram as touradas sem touros, os combates de gladiadores, que dominaram as audiências romanas. E não se pense que com o Edito de Milão de 313, que descriminalizou o Cristianismo, ou com o Edito de Tessalónica de 380, que o tornou religião oficial, os combates de gladiadores desapareceram. O “não matarás, nem causarás outro dano no corpo ou alma do teu próximo” do mandamento da Lei de Deus continuou a ser publicamente desrespeitado mesmo sob imperadores cristãos.

Conta Teodoreto de Cyrus que foi necessário que um monge da Ásia Menor, por nome de Telémaco (?—ca. 401 d.C.), fosse um dia até Roma:

“Um certo homem, chamado Telémaco, havia abraçado a vida ascética. Tinha deixado o Oriente e encontrava-se em Roma. Aí, quando decorria o abominável espetáculo, ele foi ao estádio e, descendo à arena, tentou convencer os homens que brandiam os seus armamentos, uns contra os outros, a pararem. Os espetadores ficaram de tal modo indignados que, inspirados pelos demónios que se deliciam com comportamentos sanguinários, apedrejaram até à morte o apaziguador. Quando o admirável imperador [Honório] foi informado disto listou Telémaco entre o rol dos mártires e pôs fim a esse espetáculo ímpio.” História Eclesiástica, 5-26

Curiosamente, os jogos de gladiadores nunca foram tão populares como hoje—sejam os virtuais, os videojogos, sejam os reais, o boxe, o Muay Thai, e outros. Se nos reais as mortes e as feridas severamente incapacitantes ainda vão sendo infrequentes, nos virtuais cada jogo equivale a um genocídio. Que a arte e a perícia em ferir e matar seres humanos seja considerado um espetáculo legitimo, que dê prazer, e que atraia multidões, diz muito da compaixão, solidariedade e humanidade da nossa sociedade. Que não haja nenhuma organização a militar pela ilegalização do boxe e dos videojogos violentos, mas as haja pela proibição das toiradas, ainda diz mais. E será que alguém duvida para quem estão reservadas as pedradas? Para os defensores da vida humana, ou para os protetores das bestas?

Valha-nos São Telémaco!

José Miguel Pinto dos Santos, Professor Universitário.

U avtor não segve a graphya du nouo AcoRdo Ørtvgráphyco. Nein a do antygo. Escreue coumu qver & lhe apetece. #EncuantoNusDeixam

[1] Homem: uma das duas configurações de fabrico com que que os Homens vêm a este mundo, nus para evitar confusão na classificação, verificável nos órgãos reprodutores e determinada pelo DNA; uma teoria filosófica sebosa e cerebrosa recente nega que esta divisão se fundamente corporeamente no baixo abdómen mas que se encontra realmente no córtex pré-frontal em dois neurónios de tipo x e y que determinam o género; pessoa do sexo masculino e, portanto, com características estruturais, funcionais e comportamentais inferiores à média; no hétero-patriarcado branco, aquele que serve de sustentador e provedor, sendo classificado como ‘bom’ ou ‘mau’ com base na capacidade da mulher vestir Chanel ou outro trapo de marca; membro da espécie animal Homo Sapiens, espécie que, nos intervalos em que trabalha pela extinção dos seus semelhantes, se ocupa da preservação das outras, como sapos, cobras e lagartos (para além dos toiros); apesar de todos os esforços para se autoextinguir, a espécie prospera com tanto vigor que já infeta toda a terra habitável e a Espanha, pondo em causa a sustentabilidade ecológica da mãe terra; na frase que remete para esta nota, ‘homens’ designa ‘Humanidade’, isto é, homens e mulheres, já que o texto opõe homens a bestas; noutros contextos, como por exemplo num sermão Budista, ‘homens’ significa apenas e somente a versão macho da espécie, com exclusão de mulheres, pois só aqueles podem entrar no Jōdo 浄土, o Paraíso da Terra Pura, sendo que as mulheres têm que reencarnar antes como homens neste mundo para depois lá poderem serem admitidos. Como será operada a reencarnação da última mulher como homem, para poder ter acesso ao paraíso de Amida, é uma questão que ultrapassa a competência e não cabe no estreito vaso do engenho deste lexicografo.

[2] Besta: (entre amigas) marido; fera; animal feroz; cidadão do reino zoológico para o qual algumas organizações políticas reclamam a direito à aquisição de dupla nacionalidade nas repúblicas dos homens com base na convicção que estes é que são umas grandes bestas; animal; organismo que, requerendo grande número de outras bestas para o seu sustento, demonstra a munificência com que a providência agracia as suas criaturas; cavalgadura.