Grande parte da história da humanidade tem sido vivida em tiranias cruéis. As sociedades em que as pessoas puderam viver relativamente livres da prepotência e violência dos poderes públicos e de leis e costumes desumanos e sanguinários são excecionais. Será esta excecionalidade fruto do acaso ou haverá alguma razão para que a tirania seja, nas suas várias formas, o estado natural de organização política? Não será que se pode dizer, parafraseando John Adams (1735—1826), um dos heróis da revolução americana, que uma sociedade que dê liberdade e autonomia às pessoas só é possível quando o povo é moral e religioso, mas é totalmente inadequada para o governo de qualquer outro? Se Adams estiver correto, qual será o futuro da democracia?

Por exemplo: será que arrendar o corpo para prostituição uma liberdade fundamental? Ou será antes uma perversão da liberdade, perversão essa que mais não é que uma forma de tirania? E será que vender o próprio corpo para canibalismo um direito natural numa sociedade livre ou um sinal da corrupção da autonomia individual? E se uma destas “liberdades” for legitima, porque não a outra?

Em 2001, Armin Meiwes, um informático homossexual alemão, publicou um anúncio online. “Procuro”, dizia, “homem bem constituído, 18-30, que queira ser comido”. Bernd-Jürgen Brandes, um engenheiro bissexual berlinense, respondeu e num diálogo no The Cannibal Cafe, um fórum online para fetichistas antropofágicos, entretanto fechado, acertaram um encontro para 9 de Março na casa de Meiwes.

“Sou então o primeiro? Já comeste carne humana antes, ou não?” havia perguntado Brandes.

“Não, não a encontras no supermercado, infelizmente”, respondera Meiwes.

“Infelizmente”, porque na conceção degenerada de liberdade individual popularizada pelo neo-warxismo, e cada vez mais em voga entre nós, é suposto que quem quer vender o seu corpo, seja para transplantes, para sexo, para maternidade sub-rogada, ou para bifes, o possa fazer sem restrições. E a esta liberdade absoluta da oferta corresponde um direito total na procura, mesmo que seja para encontrar bifes humanos no supermercado mais próximo.

No dia aprazado Brandes dirigiu-se livremente a casa de Meiwes. Depois de chegar tomou analgésicos e soporíficos com meia garrafa de Schnapps. Em seguida, Meiwes castrou-o, cozinhou-lhe o membro e ambos tentaram comê-lo.  Tirando a extravagância da experiência, a prova gastronómica não foi um sucesso. Brandes, a sangrar fortemente, foi então tomar um banho quente. Como horas depois a exsanguinação ainda não lhe havia causado a morte, Meiwes pegou numa faca de cozinha e degolou-o.  De seguida pendurou a carcaça num gancho e começou a talhá-la e a empacotá-la para a congelar ao lado de umas pizzas.

Até ser preso, quase dois anos depois, Meiwes consumiu cerca de 20 quilos da carne de Brandes. Como consta das transcrições do julgamento, fritava-o em azeite com alho, e comia-o numa mesa especialmente guarnecida com o seu melhor faqueiro e decorada com castiçais de prata, à luz de cujas velas o trinchava e deglutia acompanhado de um bom tinto sul-africano. Embora Brandes pensasse de maneira muito diferente de um porco—nenhum suíno se oferece para ir para bifes ou salsichas—a sua carne tinha sabor a porco, de acordo com o testemunho de Meiwes. O que parece demonstrar que, mais do que a maneira como se pensa, é a maneira como se vive que dá sabor à pessoa. 

Meiwes filmou todo o processo, desde a chegada de Brandes a sua casa até à sua arrumação no congelador e, como foi depois confirmado em tribunal, não há dúvida que este, um adulto autónomo e livre, consentiu em tudo. Apesar disso, Meiwes foi condenado em Janeiro de 2004 a oito anos e meio por aquilo que em Portugal corresponde “homicídio por negligência”. Como se isto já não fosse um atentado suficientemente grave à liberdade de dois adultos de fazerem entre si, na privacidade das suas casas, o que a sua filosofia pessoal e moral autónoma lhes permite ou até ordena, o ministério público alemão recorreu da sentença e, em Maio de 2006, Meiwes foi condenado por homicídio doloso a uma pena de prisão perpétua, que serve atualmente.

Espera-se no entanto que este atentado contra a consenso atual do que que é a liberdade individual seja corrigido em breve. Esta esperança baseia-se no recente acóRdão du supremo tribonal alemão de que a criminalização do suicídio assistido é inconstitucional. O argumento du tribonal de Karlsruhe é que que o direito à “liberdade de escolher a própria morte é garantida em todos os estádios da vida de uma pessoa” e não é restringida apenas a casos de dor extrema ou doença incurável, como estabelecido nos estatutos que permitem a cacotanásia (“eutanásia” para os amigos). Mais: “o direito a recorrer à prestação de serviços de suicídio assistido não deve ser limitado aos doentes graves ou incuráveis” sentenciou u mesmu digníssimo tribonal.

À luz deste importante desenvolvimento jurídico espera-se para breve a revisão do processo de Meiwes. Repare-se que Brandes recorreu livremente à prestação de um serviço de suicídio assistido, publicamente anunciado e prestado por Meiwes. Note-se também que na altura não existia qualquer proibição ao consumo de carne humana ou canibalismo na Alemanha. Assim sendo não há que duvidar do resultado da revisão judicial do caso contra Meiwes, quando esta for realizada, e da sua absolvição.

“Ótimo! Parece que serei o primeiro”, havia dito Brandes.

“E espero que não sejas o último. Já pensei apanhar um jovem da rua, mas prefiro matar só os que querem ser mortos”

“Também não me parece mal. Mas sim, considerando que não é assim tão totalmente legal, isto à minha vista parece-me melhor do que apanhar alguém diretamente da rua”

“Exatamente, fá-lo-ia se fosse legal”, havia concluído Meiwes.

Já é legal, havendo consentimento. Falta apenas que Meiwes seja liberto. E apesar de entretanto ele se ter tornado vegan na prisão, isso não o impedirá de oferecer os seus serviços a terceiros e, quiçá, atuar como dealer neste novo mercado.

Adams tinha razão: quando um povo perde a moral e a religião, também passa a aceitar que não há direitos inalienáveis. E quando os direitos à vida e à liberdade não são verdadeiramente inalienáveis, tudo se torna possível. Até o canibalismo.

José Miguel Pinto dos Santos

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