A grande maioria dos portugueses dos séc. 17 e 18, a maior parte dos quais sempre viveram em freguesias rurais entre o Minho e o Algarve, nunca terá visto um escravo na sua vida. As exceções teriam sido alguns habitantes de Lisboa, e uns muito poucos favorecidos da fortuna, ‘brasileiros’ e outros retornados de África & Ásia que, tendo enriquecido no ultramar, optaram por passar os últimos dias da sua vida no torrão natal. Dentre estes haveria certamente alguns negreiros que, embora ricos, viviam com a reputação social associada a qualquer traficante de carne humana.

Quer uns, quer os outros, eram, no entanto, bichos muito diferentes dos que habitam hoje o nosso país. Os portugueses dessa época tinham mentalidade e costumes completamente diferente dos portugueses de hoje. Não viam a TVI nem liam o Expresso, nunca tinham posto os pés numa escola pública nem eram fanáticos da bola, não comiam pasteis de bacalhau nem haviam sido vacinados contra nada, não tomavam duche nem lavavam os dentes, nem nunca tinham lido a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Se não tinham quase nada de comum connosco, com quem o teriam? Com os outros homens do seu tempo: com holandeses, marroquinos e tiroleses, que também não usavam a internet, não andavam de bicicleta nem tinha esgoto em casa. Para além disso, aqueles poucos residentes em Portugal que tinham sido esclavagistas teriam, devido àquele laço especial que une os que praticam o mesmo mister, uma afinidade especialmente forte com os mercadores de Zazzau, os piratas tunisinos, os traficantes turcos e os aventureiros de Southampton dessa época.

Assim, esses portugueses, quer os que foram negreiros, quer os que não o foram, são mais estrangeiros para nós hoje que os espanhóis, finlandeses ou australianos nossos contemporâneos. Assim, levanta-se a questão: que sentido faz os portugueses de hoje pedirem desculpa por aquilo que completos estranhos, estrangeiros-na-ordem-temporal mais estranhos que os estrangeiros-na-ordem-geográfica nossos contemporâneos, fizeram ou possam ter feito? A que se pode associar outra: que sentido faz os portugueses de hoje, molengões na economia e submissos na política, se orgulharem dos atos heroicos de alguns dos antigos portugueses, estrangeiros-de-antanho?*

A isto junta-se outro problema. Se os portugueses de seiscentos e setecentos que traficaram ou possuíram escravos foi uma ínfima minoria, não será o pedir desculpa pelo ‘esclavagismo português’ um insulto à memória da grande maioria que nunca teve nada a haver com o assunto? 

Mas, mesmo que os portugueses de hoje não sejam pessoalmente responsáveis pelo tráfico praticado pelos negreiros de outrora, dos quais não se sabe sequer se foram antepassados de algum tuga a viver hoje neste retângulo, e mesmo que os negreiros tenham sido uma ínfima minoria na população nacional, não se poderá argumentar que a culpa da sociedade e o estado português, a responsabilidade coletiva, ainda se mantem? A resposta é que não. A sociedade e o estado português dos séc. 17 e 18 já estão há muito mortas e enterradas. O estado português de setecentos era uma monarquia, era absolutista, era colonialista, era confessional, era mercantilista, era racionalista, era iluminista e era muitas coisas mais que hoje já não é. Várias dezenas de revoluções, várias constituições e reformas das ditas, uma guerra civil, múltiplas reformas administrativas e uma geringonça mataram e destruíram sucessivas encarnações do estado que se sucederam ao logo de mais de dois séculos. A besta que hoje nos governa pode ser menos sanguinária que a montada pelo Marquês de Pombal, mas na prática chupa-nos muito mais sangue. Mas do que não há dúvida é que é uma besta diferente e não é justo bater no cão — ou exigir-lhe desculpas — quando é o gato que arranha.

A culpa é pessoal e intransmissível e morre com o culpado. A sugestão de que alguém peça desculpa por crimes — e a escravatura foi sempre e em toda a parte um crime à luz da lei natural, mesmo quando tolerada ou promovida pelos poderes públicos e pelas autoproclamadas ‘elites bem-pensantes’ — de estranhos é apenas mais uma das palhaçadas que nos é oferecida para nossa diversão & gozo. Ficam sugestões de duas variações no mesmo género: que tal ti Jerónimo de Sousa apresentar um pedido desculpas pessoal e formal pelas sevicias praticadas no Tarrafal? Ou de os portugueses agradecerem ao sr. eng. Costa pela sua responsabilidade no sucesso dos ‘planos de fomento nacional’ com contas equilibradas do Estado Novo?]**

José Miguel Pinto dos Santos

U avtor não segve a graphya du nouo AcoRdo Ørtvgráphyco. Nein a do antygo. Escreue coumu qver & lhe apetece.

* Não faz sentido nenhum orgulharem-se como se tivesse sido obra sua. Pode no entanto fazer sentido ‘orgulharem-se’ no sentido aspiracional, de lhes servirem de referência e de modelo a imitar, hoje e no futuro, os atos de abnegação e coragem de heróis de épocas passadas.

** A culpa pela inoperabilidade do “Plano de recuperação económica de Portugal 2020-2030” de Costa Silva & Costa essa pode ser atribuída a D. Afonso Henriques.