
Introdução
Por Paulo Rodrigues
O relato que a seguir publicamos refere-se ao início da Guerra do Ultramar, em Angola, um conflito em que as primeiras vítimas dos revoltosos foram civis indefesos, que apenas tinham cometido o “crime” de ir para aquelas paragens em busca de uma vida melhor.
Seriam estas pessoas ocupantes e opressores? Em casos pontuais, sim. Na maioria dos casos, não. A terra era muita e havia o suficiente para todos. Muitos dos assassinos que atacaram as fazendas e os postos administrativos das autoridades portuguesas em 15 de Março de 1961 vinham do ex-Congo Belga (actual Zaire) e nem angolanos eram. Muitos chefes tribais angolanos, aterrorizados e chantageados por eles, aceitaram participar na revolta. E rapidamente se arrependeram. Mas, de um modo geral, a adesão da população negra do Norte de Angola à revolta foi fraca, nomeadamente nas fazendas. Assim se explica que, nessas explorações agrícolas, tenham sido assassinados mais negros do que brancos: os revoltosos descarregaram um ódio inenarrável sobre esses mesmos que diziam querer “libertar da opressão”, sujeitando-os por vezes a mortes ainda mais macabras do que aquelas já de si horrorosas a que sujeitaram os brancos e os mestiços.
Como escreve Luís Graça, no seu excelente blogue “Luís Graça e camaradas da Guiné”, «podemos perdoar a quem com armas na mão combateu o inimigo armado. Não podemos nunca esquecer e perdoar o inimigo que a sangue frio assassinou pessoas indefesas».
Eis então o relato na primeira pessoa de alguém cuja vida ficou marcada para sempre pelos trágicos acontecimentos do 15 de Março.
PARA QUE SE FAÇA HISTÓRIA
Os factos que vou relatar vão por ventura fazer pensar muito boa gente, todavia eu não poderia deixá-los no esquecimento da História e sobretudo por respeito à memória do meu único irmão o FERNANDO ALEXANDRE VENTURA FONTINHA.
A minha história sobre a Guerra do Ultramar (na qual viria a participar como militar na Guiné) é iniciada precisamente no início do ano de 1961.
Tinha eu 12 anos. Havia nascido no Ambriz (Angola) em 28 de Outubro de 1948. O meu pai era Guarda-Fiscal naquela vila piscatória e, no início dos anos 50, adquiriu uma fazenda que viria a explorar até ao dia 15 de Março de 1961, durante cerca de 10 anos.
Era situada no centro do triângulo formado por Zala, Quipedro e Nambuangongo, fazendo parte do Posto Administrativo desta última.
Nos primeiros meses de 1961, encontrava-me em Luanda frequentando o Colégio dos Padres da Missão de S. Paulo, bairro onde sempre residi, quando não estava na fazenda com o meu pai e o meu irmão, 6 anos mais velho que eu. A minha mãe havia morrido em 1953, vítima de biliosa, tendo sido sepultada no cemitério de Nambuangongo.
Naqueles dias do início do ano de 1961, lembro-me de ouvir na rádio e opinião pública, o ataque ao Santa Maria e, mais próximo, o ataque às cadeias de Luanda. Lembro-me da perseguição a fugitivos da mesma e de andar, juntamente com outros miúdos, nas Barrocas do Miramar, que nós conhecíamos muito bem, em aventuras inocentes e do conhecimento. E de longas brincadeiras nas redondezas do Cinema Miramar, na busca constante de furar o sistema para irmos vendo os filmes por entre as árvores e arbustos.
Até que se dá o 15 de Março. Sem saber nada do que tinha acontecido na fazenda. Só lá para o dia 20 é que tive notícias. As piores.
Chegam os primeiros sobreviventes e entre eles o meu pai, meio despido e descalço, na altura com 51 anos de idade, desfigurado e desfeito no seu íntimo. Pegou em mim e esteve uma eternidade, agarrado a chorar…
Os Acontecimentos
Eram cerca das 4 horas da tarde do dia 15 de Março de 1961. A essa hora o meu pai encontrava-se a descansar no quarto, quando se apercebeu que algo se está a passar lá fora. Levanta-se, vem em direção à porta e verifica que praticamente todos os empregados europeus, nos quais se encontrava uma senhora que desempenhava as funções de governanta e seu filho de 8 a 9 anos, juntamente com o marido, motorista do camião, se encontram barricados atrás da porta que está a ser violentamente empurrada e cortada à catanada. Logo o meu pai constata a ausência do filho Fernando…
De repente, a porta desaba e por milagre ou não, um dos empregados barricados surge de catana em punho e decepa um dos assaltantes, que apenas temiam morrer dessa forma e não a tiro, que não era considerada morte… De imediato, o grupo assaltante recua assustado, dando tempo a que todos fujam em direção à camioneta, que previamente tinha sido preparada para transportar uma carrada de madeira para a Serração que servia de apoio àquela fazenda. É quando o meu pai dá com o meu irmão a agonizar na cabine da camioneta, com uma catanada na testa e outra no peito!…
Algum tempo antes destes acontecimentos, enquanto se tratava dos preparativos do transporte de madeira, o meu irmão que era paralítico dos membros inferiores, juntamente com o motorista e outros empregados, estavam em volta do camião. A senhora governanta que era esposa do motorista, também assistia, quando se apercebe duma certa movimentação junto ao capim. Julgando tratar-se de algumas galinhas que para ai tenham ido, começa a deslocar-se para a zona. De imediato um grupo compacto de guerrilheiros da UPA, de catana em punho, se desloca em direção ao grupo, pondo naturalmente este em fuga para o interior da casa, aí se barricando atrás da porta de madeira.
Havia todavia quem não podia locomover-se com tamanha rapidez… restou ao meu irmão tentar proteger-se no interior da cabina da camioneta. Foi a sua última morada enquanto vivo…
Naquele momento, o mais urgente seria fugir de camioneta, mesmo carregada de madeira, que apesar de tudo, andava mais rápido que os guerrilheiros!
Seguiram para Nambuangongo que distava cerca de 20Km da Fazenda, com a intenção de pedir ajuda. Nada feito, esta já estava ocupada. Restava a saída para o Onzo, tendo sido inviável lá chegar. A meio do percurso, árvores abatidas na estrada barraram o caminho. A única saída seria largar a camioneta e fugir para a mata. Foi o que fizeram. Por lá andaram 3 dias e 3 noites, até que se aperceberam da ajuda militar que se aproximava e aí saíram da mata e foram recolhidos. De imediato se dirigiram à camioneta para recolha do corpo do meu irmão. Esta estava incendiada e o corpo tinha desaparecido. Terão sido recolhidos restos mortais meses mais tarde, pelo Batalhão do Coronel Maçanita.
Refúgio em Portugal
Após estes factos, o meu pai e eu fomos para um centro de refugiados, situado na redacção de um jornal, cujo nome me não recordo, próximo da Casa Mortuária de Luanda. E refiro isto, porque em vez dos atuais apoios psicológicos, eu com 12 anos, fui convidado a ir reconhecer corpos esquartejados conforme estes iam chegando do mato, entre os quais podia estar o meu irmão…
Finalmente, nos primeiros dias de Maio chego a Lisboa, numa ponte aérea para senhoras e crianças que fizeram um percurso de 3 dias com escalas, em avião da Força Aérea.
O meu pai ainda ficou por Angola, acabando por juntar-se a mim algum tempo depois, com a mágoa de uma vida desfeita depois de tanto trabalho.
Quanto a mim, chegada a idade de cumprir o serviço militar voluntariei-me para o curso de Operações Especiais, que frequentei em Lamego, no 1.º Turno de 1970, seguindo-se dois anos de guerra na Guiné, integrado na Companhia de Caçadores 2791 como furriel miliciano.
Regressado à Metrópole, ingressei na vida profissional e constituí família. O passado deixou marcas indeléveis, mas viver é isso mesmo: vencer as dificuldades.
O terrorismo direcçionado à população civil de extracto europeu, e aos seus empregados africanos, replicava a “receita” maoista empregue no Congo ex-Belga, onde também foram chacinadas populações civis desarmadas. As emboscadas de estrada, no Norte de Angola, visavam com frequência as viaturas particulares, especialmente as que transportavam mulheres e crianças. Os grupos armados da UPA, responsáveis por inúmeros massacres, agiam quase em auto-gestão, sem cunho ideológico, e apenas motivados por um ímpeto assassino…
Acredito perfeitamente no testemunho descrito. Eu fui como militar, fins da década de 60 e já regressei na década de 70, percorri o Norte de Angola, estive no Ambriz, Zála, Nambuangongo, Pedra Verde e muitos mais locais, passámos por muitas Fazendas destruídas, incendiadas em 61, em algumas ainda lá estavam as viaturas dos fazendeiros queimadas, vi algumas cenas filmadas e fotografadas em 61 quando do terror, pior do que esquartejar uma pessoa, o que fizeram a crianças e meninas adolescentes. Basta dizer que ainda não há muitos anos, o chefe máximo da UPA, responsável por esses massacres, que hoje está integrada nos partidos atuais de Angola, numa entrevista dada a um jornal internacional, quando lhe perguntaram como tinha coragem para matar bebés, ele respondeu com cara de sorriso: não lhe custava nada, era só agarra-los pelos pés, levanta-los a altura de um metro e deixa-las cair de cabeça, já não respiravam mais!!!!!!!!!!!
Excelente testemunho.
Diz bem; a terra era muita e chegava para todos…
Quem era racista afinal?
Agora querem todos vir para a europa, esta europa dos colonialistas racistas…
Obrigado pelo seu artigo que, sinto, lhe deve ter custado muito a escrever…
É bom que haja muitos que contem as suas experiencias para que os portugueses não morram ignorantes…
O jornal referido, situado perto de uma casa mortuária, era o Diário de Luanda. Ficava na Avenida Lisboa também conhecida por Avenida do Aeroporto.