
Lisboa está na moda. É fashion. É gourmet. Fosse alimento, Lisboa seria “glútenfree”.
Fosse um aparelho electrónico e seria a iLisbon. Fosse antes uma peça de roupa,
claramente seria Versace. Não é portanto de admirar que esta cidade se tenha tornado
um destino turístico inflacionado por uma espectativa de se encontrar a cidade moderna
e cosmopolita que não é. Madonna já nos definiu, somos medievais e parámos no
tempo. E vejam bem, disse-o, assim, vestida e sem auto-tune.
Chegado a Lisboa. Aeroporto da Portela. Enquanto clica na aplicação do seu
telemóvel o turista dá-se com o conselho de não chamar um Uber. Arriscaria dessa forma
ser atacado por taxistas, e quem sabe, pelo seu sindicato. Deveria antes optar por um
táxi, dizem-lhe, mesmo que isso implique chegar à Baixa-Chiado passando duas vezes
por cima do rio Tejo. Ah, e chegar ao final da viagem sem troco porque, tão conveniente,
o taxista “não tem moedas”. Que pena, tem de ficar assim. Um troco de três euros e
setenta e cinco que o turista não recebeu de volta.
Quem conhece um país novo sabe: num ambiente estranho o primeiro conselho é
sempre seguido. O turista começa a avançar à praça de táxis. Felizmente não trouxe
meninas virgens consigo, ou leis poderiam ser ali violadas.
Mas (acrescenta o causal conselheiro) por outro lado tem sempre a opção Metro.
“O” Metro. Não imagina este errante turista que o metro de Lisboa está reservado tãosomente
àqueles que enfrentaram os mares para dobrar o Cabo Bojador. Se Henrique
Lopes de Mendonça fosse passageiro no Metro de Lisboa em 2019, teria escrito no hino
nacional ‘sob’ a terra e sobre o mar, numa óbvia ode à nossa capacidade de suportá-lo.
Desce as escadas para a profundidade – as rolantes estavam avariadas – e espera-o
um indivíduo nas máquinas para comprar os bilhetes de metro. A função deste indivíduo
é prestar auxílio forçado a quem precisa das máquinas para comprar bilhete. O generoso
não aceita não ajudar. É, digamos, um funcionário público ao contrário. Com efeito,
embora o turista não queira ajuda, ajudado será. Em troca? O troco. Uma comissão pelo
trabalho administrativo – dir-se-ia se o rapaz, em vez daquelas roupas rotas, vestisse
camisa e um crachá com o nome ao peito. Um troco de três euros e setenta e cinco que
o turista não recebeu de volta.
É portanto com menos cinco euros na carteira que o turista se vira para as cancelas
onde terá de passar o Ticket recém-comprado. É, também, com menos cinco euros na
carteira que testemunha dois acrobatas a saltar as mesmas cancelas que o obrigarão a
usar esse bilhete. Depois desse número acrobático cumprimentam o segurança como se
amigos. O segurança não os cumprimenta de volta, nem para lhes pedir o bilhete que
sabia que não tinham. Vive num curioso mundo em que não pode fazer o seu trabalho
para não arriscar perdê-lo.
Mas o turista tinha-o (ao bilhete), e cedo se aperceberia de que há outra classe de
passadores de cancelas de metro. Os ninjas. Mais subtis. Vultos que se integram por
detrás de nós no momento em que se dá luz verde e a cancela abre. Surgem na forma de
uma presença na nossa retaguarda, evoluem para uma ligeira pressão e depressa um
empurrão. Mas não é nenhuma força sobrenatural. Apenas um indivíduo que, não tendo
comprado bilhete, também ele queria passar. E passava portanto na sombra do turista.
Assim, de fininho. Afinal, se o turista pode entrar pelo Ticket que comprou, também este
jovem deve poder entrar pelo Ticket que o turista comprou. Não seja egoísta, senhor
turista.
Enquanto esperava o metro na linha vermelha, o turista foi saudado com os avisos
“Try not to be in dark places” e apelos para “proteger os seus pertences”. Frases
convidativas, portanto. Assim saberá o turista que, na infelicidade de ser assaltado, a
culpa será só sua. Quem lhe manda estar em estações 1) pouco populadas e 2) cujas
luzes estão estragadas? Estava a pedi-las. Este tom é apenas cortado pelo pedido de
retirar a mochila para criar espaço na carruagem. Nem tudo é mau.
O turista teve tempo para pensar nos vários cenários de assalto que as mensagens
sugeriam. Afinal, faltavam 13 minutos para chegar o metro. E cheia ficava a estação.
Talvez fosse uma solução de prevenção de roubos: aumentar os tempos de espera para
que as estações estejam mais populadas e assim se previnam assaltos. Ora, surpreso
ficou quando – finalmente! – chegou o metro. Apenas 3 carruagens. Turista corre. Todos a
correr. Portas a fechar. Bom, tentemos o próximo.
Neste também não foi possível. Talvez o seguinte.
O caminho até à Alameda começou com uma música. Um indivíduo com um cão
aos ombros a tocar clássicos populares no seu acordeão. O cão trazia à boca uma bolsa
improvisada onde o turista depositaria algumas moedas. Puxou uns sorrisos. Umas
fotografias. Os péssimos dotes para o acordeão contrastavam a graça de ter aquele
patudo ao ombro, e era este que fazia o negócio. Esperem até o PAN saber disto.
Fez a carruagem e saiu. Silêncio. Mas como quem faz zapping na televisão, surge
agora um outro sem-abrigo. Diferente. Este, um rapaz sem nome, mas com o dom de
contar a história de como ali chegou. Vive na rua com a namorada e precisa de algumas
moedas para comer. Tem um penso-rápido no braço.
O turista não percebe a auto-biografia que lhe é relatada enquanto cede as últimas
moedas, mas percebe o conflito moral de quem anda no Metro de Lisboa todos os dias.
Não paga apenas o bilhete. Paga também as sucessivas atracções que por lá desfilam. E
no percurso da viagem o passageiro tem um conflito a resolver: se fica mais leve nos
bolsos ou mais pesado na consciência.
Alameda. Mudança de linha. Talvez agora seja diferente. Perturbações na linha. 18
minutos de espera. Influxo de novos ocupantes para a estação. Cálculos preditivos das
condições espaciais a que estará sujeito: veredicto: provavelmente apertado. A mesma
voz-off que avisa sobre pickpockets. Perdeu um comboio. Deixou ir o segundo.
Consegue, de novo, ao terceiro comboio. Afinal não, não foi diferente.
Ao longo da viagem de metro até à Baixa-Chiado o turista viajou por vários países:
Índia, Paquistão, China. Esta era a prometida cidade cosmopolita ao ritmo da música do
telemóvel de um grupo de quatro jovens que seguiam à praia mas que pareciam já lá
estar. Nesta carruagem o turista viajava de pé, pois sentada ia uma senhora, e, ao seu
lado, sentada ia a sua mala. O foco estratégico desta senhora no telemóvel não criou
aquela oportunidade que o turista esperava para perguntar se o bebé (a mala) poderia ir
ao colo. Mas os olhos da senhora só interromperam o ecrã do telemóvel para atentar
alguém que não os tinha. Um cego percussionista que pedia esmola no compasso dos
próprios batuques. Sem dúvida o melhor dos três. Mas não podendo contribuir desta
vez, o turista percebeu, sem perceber, os murmúrios irritados que vieram deste semabrigo
invisual assim que saiu da carruagem. Mas esta é a consequência de se estar na
linha final; por esta altura já os passageiros deixaram as suas poupanças nas linhas
anteriores com os seus colegas. Ele é que não estava a ter visão.
Baixa-Chiado.
Chegou. Onde se encantaria com as ruas cheiro a urina. Com os palacetes de
azulejos roubados. Os pastéis de nata que ontem não se venderam. A oferta de erva
(será mesmo erva?) nos cruzamentos da Rua Augusta. De um serviço de esplanadas que
inclui a companhia de pombos e as esporádicas visitas de outros sem-abrigo. Mas isto o
turista ainda não sabe. Saberá apenas, talvez, num próximo artigo.
11 de Junho de 2019
