Este é mais um artigo a analisar as mais do que sobre-analisadas eleições legislativas de 2019. No entanto, penso que há algumas verdades que ainda não foram teorizadas até ao momento pelo comentariato nacional.
A vitória do PS não foi uma surpresa e a derrota do PSD tão pouco. A derrota do PCP era – também ela – previsível, sobretudo depois dos seus resultados nas Presidenciais. Houve dois grandes desenvolvimentos na noite eleitoral: a hecatombe do CDS que ninguém previu e a insurgência de três novos partidos no Parlamento.
Digo ‘insurgência’ porque ninguém oriundo do sistema político ficou satisfeito com esse desenvolvimento – a dor de cotovelo é não apenas partidária mas também jornalística pois o status quo jornalístico está, por esta altura, tão corrompido, dependente e politizado que uma derrota do sistema político equivale a uma derrota do sistema jornalístico.
Posto isto, e se eu dissesse que tudo isto poderia ter sido evitado?…
Quando, em 2015, uma inaudita manifestação de direita protestava à porta da Assembleia da República e os líderes das esquerdas formalizavam a geringonça, as vozes de ira que se faziam ouvir eram um prenúncio do que se anunciava: o fim do sistema político Português tradicional e, potencialmente, o fim da III República.
Ora, vamos por partes.
Porque se indignou a direita? Desde o 25 de Novembro de 1975 que se havia encontrado um equilíbrio orgânico no Parlamento Português: à esquerda havia um partido do arco da governação e dois partidos de protesto, à ‘direita’ havia dois partidos que completavam o arco da governação.
Este sistema era equilibrado porque sendo o regime, um regime de esquerda, o PS era o partido natural do sistema e o partido charneira do regime. PSD e CDS providenciavam uma alternativa para quando o PS entrava em pântano mas num regime esquerdista, os três concordavam que a extrema-esquerda devia deixar-se de fora de entendimentos de governação. Embora este tipo de cordons sanitaires sejam sempre pouco democráticos, a liderança da própria extrema-esquerda sentia-se confortável no seu papel de eterna rebeldia, pois sabia que uma sua governação implicaria consequências desastrosas: ou entravam em compromisso com a realidade ou levavam o país ao fundo – ou se Syrizavam, ou se Maduravam…
A reacção das esquerdas à austeridade foi o resultado, como sempre, de incontinência emocional e Passos Coelho, foi equiparado a uma espécie de Pinochet Português menos os helicópteros. Falava então, sua sapiência sedenta de protagonismo Mário Soares, do radicalismo neoliberal do PSD-CDS quando, na verdade, o próprio PS era o autor da crise nacional e ele próprio já tinha governado com o FMI obrigando a medidas de austeridade. Pior ainda pois mal se pode dizer que Portugal tenha passado por austeridade grave: nenhum hospital fechou, nenhum ministério encerrou portas, e as escolas que se consolidaram em grandes aglomerados foram o resultado de tendências demográficas, mais do que cortes na educação.
Qual teria sido o procedimento normal em 2015? Simples: indigitar PSD-CDS para um segundo mandato enquanto governo minoritário. O mesmo já havia sucedido no passado tanto com PS como com PSD.
Uma pessoa recusou: António Costa.
Quais foram as boas razões de Costa?
O PS faliu ideologicamente na passagem do milénio. O socialismo deixou de ser credível enquanto projecto económico depois de 1989 e a ‘terceira via’ de Blair faliu depois da invasão do Iraque em 2003.
Que restava ao PS enquanto plataforma político-eleitoral? Nada. Por essa mesma razão, todas as figuras históricas do PS se recusaram a avançar para a liderança do partido pós-Guterres. Consciente ou inconscientemente, todos sabiam que ou o partido se encaminhava para uma esclerose de 30 anos até à morte em coma profundo, ou o partido se transformava …e a próxima encarnação não seria tão benigna quanto a última.
Ficou assim a cargo do membro mais sem escrúpulos do governo Guterrista, a renovação do PS: José Sócrates – provavelmente o único Ministro do Ambiente do Ocidente que foi daí promovido a Primeiro-Ministro.
Sócrates provou ser um PM muito Português, primando pela chico-espertice e pela manha: de manhã roubava ‘causas fracturantes’ ao Bloco de Esquerda, à tarde praticava engenharia financeira para adiar reformas estruturais para o país – apesar da maioria absoluta que havia alcançado em 2005 – e à noite tentava co-optar os media e controlar o fluxo de informação no país, dominando a sua imagem e a do governo.
Sócrates acabou por falir o estado Português e quase que arrastava o PS para a lama dos seus vários processos por corrupção.
António Costa contava que a austeridade arruinasse a boa vontade para com o governo Passos Coelho mas tal não sucedeu.
Que aconteceria ao PS se o PSD presidisse não só à austeridade mas também à recuperação económica? E com sucessivos processos contra Sócrates a expor a podridão do PS pelo caminho?
Quais foram as más razões de Costa?
Salvar o PS é compreensível mas depois chegamos ao narcicismo e à arrogância. António Costa pensou que era muito esperto dando a volta à direita e trazendo para a governação a extrema-esquerda, pela primeira vez desde o PREC. A chico-espertice está presente em tudo desde o nepotismo inédito e sem vergonha, ao desplante de alegar que a austeridade acabou enquanto sujeita o país à mais pesada carga fiscal de sempre e reivindica autoria pelo desempenho económico nacional, em larga medida sucesso do governo de Passos Coelho e das suas medidas de desregulamentação e desburocratização.
Como todos os dirigentes socialistas, Costa passa a batata quente à geração vindoura. Ele poderá ter salvo o PS a curto-prazo mas a geringonça já está a fazer mossa e poderá ter consequências desastrosas para o PS a longo-prazo.
Antes de mais porque galvanizou a direita adormecida: manifestada no Chega e na Iniciativa Liberal, a onda de direita já vitimizou o CDS e ameaça o PSD a médio prazo – embora os seus dirigentes, qual colectânea comatosa, ainda não pareçam ter compreendido a vulnerabilidade de que padecem. Esta direita não mais estará disposta a pactuar com um PS herdeiro do socratismo e da geringonça. Entre Chega, IL e Aliança, a direita alternativa e com poucos anos de existência e organização, conseguiu retirar ao PSD-CDS cerca de 170,000 votos e 2 deputados. É difícil para novas formações políticas catalizar votos em deputados ou eurodeputados pelo que o estrago é muitíssimo maior que 2 deputados na Assembleia e sim, os muitos deputados que PSD e CDS teriam conseguido eleger com esses 170,000 votos.
Parte do perigo de formações como o Chega e a IL assenta também nas suas características enquanto partidos fortemente ideológicos. Os liberais e os conservadores estão saturados das rezas a que são obrigados para, depois de cada eleição, os aparelhos de cacique dos grandes partidos deixarem um dos seus ascender a deputado ou secretário de estado. O tempo da mudança por dentro e do civismo através de lobby aparelhista, acabou. A partir de agora, o voto das bases da direita terá um preço ideológico e esse preço sairá caro.
Algo que Rui Rio e Assunção Cristas deram por barato foram precisamente essas bases. Depois de uma catástrofe socratista nunca vingada ou sequer um mea culpa da parte do PS, tanto Rio como Cristas acharam por bem virar ao centro. Como se fosse normal. Como se António Costa fosse normal, como se a geringonça fosse normal, como se o marxismo cultural nas escolas fosse normal, como se um PM preso por corrupção fosse normal, como se uma das figuras mais facciosas e truculentas das hostes do PS enquanto Presidente da Assembleia da República fosse normal, como se a substituição de uma Procuradora-Geral da República íntegra fosse normal…
As más notícias para a direita continuam: é que os 170,000 que optaram por voltar costas ao PSD-CDS são apenas a ponta do iceberg. Esses 170,000 são parte elite informada, parte classe média activista. Mas a seguir virá o dilúvio de todos aqueles que tendo mais que fazer do que ligar à política, nem sequer sabiam que existem agora alternativas à direita.
Qual o perigo desta direita? A médio-prazo essa direita poderá mesmo custar votos e favorecer as esquerdas mas o problema é que a longo-prazo, essa direita será uma ameaça para toda a estrutura dependentista da esquerda.
Antes de mais porque encostará os Portugueses à parede: “quando quiserem mudar de direcção, a alternativa é a direita e não a pseudo-direita. Ou nós, ou a esquerda; escolham”. Depois porque por mais que a sua chegada ao governo tarde, quando chegar, os eleitorados subsidio dependentes das esquerdas, desde as ONGs e académicos bolseiros marxistas do Bloco, aos bairros sociais e função pública do PS, sofrerão um choque. Sim, continuarão a ter um interesse corrupto em votar na esquerda para obter subídios mas também terão menos confiança nela para os conseguir.
Chegamos finalmente ao principal problema do PS: a morte do voto útil.
Ao realizar a geringonça, Costa poderá ter desencadeado o fim do próprio PS. Tanto PS como PSD dependiam até agora em grande medida do voto útil de muitos Portugueses, voto esse que determinava se o governo era mais ou menos socialista. No entanto, a utilidade desse voto dependia e implicava a possibilidade de governos minoritários. A partir do momento em que Costa impõe um sistema plenamente escandinavo de governos de coligações multi-partidárias, a utilidade do voto táctico …evapora. A partir de agora o eleitor vota em quem gosta e depois …”eles que se entendam”.
Isto vai resultar a prazo no aumento da abstenção – de que serve votar se o voto não é determinante? – no subsequente aumento da importância proporcional dos pequenos partidos e também no implícito esvaziamento dos partidos de sistema, com especial pendor para os que estão ideologicamente insolventes…
O Livre …capitaliza …da falta de irreverência de protesto à extrema-esquerda. O PCP já aprendeu a lição e falta a ala esquerda do PS e seus gémeos siameses do Bloco chegarem à mesma conclusão.
Será o PS pazokizado? Parece-me que sim, sobretudo se entendimentos com o PSD ‘centrista’ estiverem no horizonte.
Pelo menos a histeria do jornalismo nacional já vale a dose de pipocas.
Aguarda-se novos traumas do sistema, com antecipação.
Miguel Nunes Silva
4 de Novembro de 2019