Apesar de não ter uma taxa de mortalidade aterradora, o SARS-CoV-2 já mostrou os danos que pode causar nos cuidados intensivos e respectiva capacidade de ventilação dos hospitais. Neste sentido, é também um vírus político, pois traz à luz as debilidades de sistemas de saúde impreparados – basta comparar o caso alemão com o italiano para o constatar. Esta realidade, porém, encontra-se disfarçada pelo foco quase exclusivo no confinamento como a principal medida de combate à pandemia. Inverte-se, assim, o ónus da responsabilidade, ao colocá-lo nas costas do povo; como se este tivesse de colmatar, com a sua obediência, uma situação que, mais cedo ou mais tarde, só pode ser resolvida com aquilo que efectivamente nos tem faltado: competência e investimento governamentais.
Tendo, sobretudo, em conta que Portugal tem uma população envelhecida, nada tenho a obstar à fase de confinamento que vivemos até meados de Abril. Mas, chegámos a uma altura em que não é mais possível fugir ao dilema que nos persegue: Se acabamos com a quarentena morremos da doença, se continuamos com ela morremos da cura.
Este dilema é irresolúvel. Pois, tanto a economia como a saúde são órgãos vitais da sociedade – escolher entre o pulmão e o coração é absurdo. O máximo que podemos fazer é sair desta bifurcação, custe o que custar, sabendo que não temos soluções para conviver com ela.
No artigo COVID-19: KILL THE BEAR propus um caminho que me parece ser o único viável: Quarentena de curta duração com vista ao impacto. Como? Com um Orçamento de Guerra: Mobilização de todos os meios financeiros e humanos, em conjunto com a sociedade civil, para a aquisição/produção de meios e convocação de recursos. A este propósito, recomendo um estudo da Universidade de Harvard que, apesar de se focar sobretudo na estratégia da quarentena intermitente, aponta também para o reforço dos sistemas de saúde com vista à redução da duração e impacto da pandemia.
- O Governo tem feito um orçamento de guerra?
Segundo a TV e Jornais, António Costa tem-se portado tão bem que até parece dar prioridade simultânea à quarentena e ao reforço de meios, ainda que tal seja uma contradição que atenta contra o próprio conceito de prioridade. Vivemos, portanto, num país das maravilhas em que até a oposição é dada como exemplo (como se isso fosse positivo em democracia). Ora, a bem da verdade, para quem aparenta ser uns de mãos-largas, o Governo fez pouco mais que uma ninharia. Mas, como uma ninharia sempre é melhor que nada, cá vai:
- Contratou 1.419 profissionais de saúde – será suficiente?
- Cinco equipas de militares, cada uma com três pessoas, estão a processar 50 testes por dia, ou seja, 1.500 por mês – uma gota de água no mar das necessidades;
- Quer duplicar o número dos ventiladores – ah, quer? Vejam lá, cuidado com as megalomanias. Tendo em conta que tínhamos 1.142 (não estou a brincar), e o número mais baixo da Europa em camas de cuidados intensivos (idem), é caso para dizer (como o saudoso Nuno Melo): estou emocionado…
Evidentemente, a realidade é outra. Com a costumeira simpatia dos Media, a boa imagem do Governo nada mais tem sido que uma usurpação moral dos méritos dos portugueses. Isto é, da Sociedade Civil que – essa sim – tem-se multiplicado em iniciativas, por meio das suas empresas, associações, organizações. Aqui ficam alguns exemplos:
- Empresa de Famalicão cobre necessidades do SNS produzindo 12.000 zaragatoas por hora;
- Mais de 200 empresas de têxtil disponíveis para produzir máscaras;
- CITEVE – Centro Tecnológico das Indústrias do Têxtil e do Vestuário – Lista de Produtos Aprovados;
- Ventiladores Made in Portugal;
Esta última referência é emblemática do que se está a passar. O CEIIA conseguirá produzir 10.000 ventiladores ao longo de 2020. Mas, quantos é que o sistema de saúde efectivamente adquiriu ou encomendou? Terá o Governo consciência de que vale a pena encomendar já toda a produção? Se tivéssemos 30% a 50% dessa soma no início do verão e 70% a 90% no fim do outono, poderíamos ter uma capacidade de resposta que reduziria drasticamente a necessidade de medidas de contenção. Isto sim, seria colocar Portugal na linha da frente. No entanto, algo me diz que, se tivermos adquirido uns 5.000 ventiladores até Outubro já ficaria muito espantado.
2. Comparemos, agora, com outros países…
- No início desta crise, a Alemanha já dispunha de 25.000 ventiladores na totalidade dos seus hospitais. Para lá destes, Berlim encomendou ainda outros 10.000 a propósito desta pandemia. Proporcionalmente, isto seria o equivalente a Portugal já ter 4.000 ventiladores no início de Abril (quando os teremos?);
- França contava com 7.000 ventiladores no final de Março (em proporção, igual a nós). Medidas de Macron: Até meados de Maio conta ter 10.000 ventiladores fabricados, superando proporcionalmente a nossa duplicação;
- Nova Iorque tinha 7.500 a 3 de Abril. Palavras de Andrew Cuomo no briefing de 4 de Abril: “on ventilators, we ordered 17.000”. Proporcionalmente, seria como nós já termos 3.750 e encomendado 8.500;
- Reino Unido: 6.699 (em proporção, um pouco menos que nós no início de Abril). Contudo, já encomendou um total de 62.000 ventiladores. Como metade ainda precisa de passar em testes e regulamentações, podemos considerar, numa primeira fase, 30.000 (o que seria o mesmo que nós estarmos à espera de receber 4.000). E, numa segunda fase, outros 30.000. Ao todo, seria como nós já termos encomendado aproximadamente 8.000;
Após esta comparação, dizer que o Governo está a apostar em recursos deve ser a piada do ano.
3. Reféns do vírus!
Enquanto a sociedade civil se multiplica em esforços, o Governo disfarça a sua incompetência e forretice com propaganda e condicionamento dos Media. Sabendo, desde o início de Fevereiro, que seria urgente reforçar o suporte operacional e logístico do SNS, levou mais de um mês para actuar e, quando o fez, deu-se logo por satisfeito ao duplicar os escassos meios que tinha. Assim, resguardando-se quase exclusivamente nas medidas de contenção, dá a entender que fez um brilharete. O problema é que, agora, não temos recursos suficientes para levantar o confinamento e aliviar drasticamente as medidas tomadas.
Estamos reféns do vírus na proporção exacta da nossa falta de investimento em recursos. Resta-nos o banho de maria até à vacina – alargar o estado de emergência até ao verão, ou então, sair do confinamento para voltar a ele no mês seguinte; repetir o lockout no inverno, etc. – sob o preço de assistir ao descontrolo na resposta a novos surtos de infeção. Enquanto isso, veremos outros países a regressar (quase) à normalidade e produtividade económica.
Por sua responsabilidade, ou falta dela, e por mais que deseje mandar as pessoas trabalhar (produzir e pagar impostos), o Governo continuará a ver-se forçado a apostar prioritariamente na contenção, empurrando com a barriga (como é seu apanágio desde que foi eleito) o dilema irresolúvel desta pandemia: a escolha entre o pulmão (vida, saúde) e a economia (coração, acção), sendo ambos órgãos vitais. Até agora, entretanto, a propaganda tem conseguido convencer os portugueses de que trancar gente em casa e comprar uns 1.500 ventiladores (se tanto) são um exemplo heróico de governação. Só quando virem as consequências de tudo isto nas suas carteiras é que se aperceberão de que qualquer pacóvio, com força policial e conta no Alibaba(*), poderia fazer o mesmo.
(*) Independentemente da ironia, registe-se a curiosa informação de que os prazos de entrega de ventiladores, neste site, ainda estão para 1 de setembro (bem a tempo do outono) e que em Março se conseguiam para antes do verão.
