COVID-19: KILL THE BEAR

Há um filme escrito por David Mamet chamado The Edge (1997). Conta a história de Charles Morse (Anthony Hopkins) e Robert Green (Alec Baldwin) que, após um acidente de avioneta, ficam perdidos numa inóspita floresta, onde são perseguidos por um terrível Urso-de-Kodiak. Enquanto Robert desespera, Charles propõe uma medida inesperada: Kill The Bear. Como? Em duas fases. Primeiro, preparam-se, montam uma armadilha com engodo (sangue). Depois, enfrentam o bicho, custe o que custar.

Isto faz lembrar o que agora estamos a passar com a Covid-19. Será que sabemos bem o que estamos a fazer? Até agora, só o Oriente está a safar-se melhor, e isso acontece por três motivos. Primeiro, no contexto de uma pandemia, eles estão melhor preparados em termos sociais e culturais. Há muito que praticam o distanciamento social, até na forma como se cumprimentam, e usam máscara mal sentem o mais pequeno resfriado (para não passar a outros). Segundo, têm mostrado mais determinação e eficiência na produção, distribuição e implementação de meios e recursos. É notável como a Coreia conseguiu fazer tantos testes. Quanto à China, não só montou um hospital de campanha em poucas semanas como parece ter ventiladores para dar e vender (ainda que o material vendido pareça estar à altura das suas lojas de bugigangas). Terceiro, politicamente, os orientais são incomparavelmente mais obedientes, algo que só em tempos de peste ou guerra pode ser vantajoso.

Por cá, tudo é diferente. Não temos as mesmas características, nem políticas, nem culturais, e até mesmo em termos materiais temos deixado a desejar. Portugal e Espanha, por exemplo, estão a comprar ventiladores à China. Seremos assim tão incapazes de os produzir nós? Vejamos, então, que estratégias temos implementado no Ocidente. Apesar das diferenças, genericamente, temos tido duas respostas essenciais ao problema, a Americana (EUA e Brasil) vs. a Europeia (UE).

Neste contexto, o primeiro político ocidental a fazer lembrar o filme (The Edge, 1997) foi, sem dúvida, Boris Jonhson, com a sua proposta de deixar espalhar a infecção entre a maioria da população e assim criar o efeito rebanho ou imunidade de grupo. O que é isto senão dizer “Kill The Bear”? Como seria de esperar, a reacção do mundo foi de uma estupefacção semelhante à de Robert, ficaram todos chocados. Entretanto, o Reino Unido voltou atrás e quem acabou por seguir esse caminho foram os EUA e o Brasil. Mas, será mesmo assim? Será esta a estratégia que Charles propõe no filme? Em bom rigor, não. Pois, a primeira fase do plano parece ser completamente ignorada. Recordemos que a ideia não é atacar o urso imediatamente, quase de improviso. Antes de mais, Charles recolhe-se num lugar aparentemente seguro, enquanto elabora um plano de acção, com a ajuda do pusilânime Robert, a quem tem de mentalizar, quase obrigá-lo a tornar-se um homem e a querer sobreviver com todas as suas forças. Só assim poderão vencer aquele terrível inimigo.

Quanto à velha Europa, até agora, só temos visto medidas progressivas e promessas de quarentenas sem fim à vista. Fala-se ainda de uma segunda fase, caso o “urso” não desapareça (e porque havia de desaparecer?), “hibernando” no verão para voltar no Inverno. Por outras palavras, os governos europeus parecem não ter outro plano senão fugir do urso até um dos dois morrer de cansaço. O problema é que, neste mundo selvagem, não faltam outras feras, além dos ursos, sempre prontas para caçar os mais débeis e fazer deles um petisco. Por este caminho, vamos acabar cozidos como sapos em lume brando, até finalmente sermos panados pelo colapso da economia e sistema financeiro, antes de sermos fritos pela pobreza e caos social e acabarmos servidos com um palito à Rússia e China. Isto é de loucos. A solução europeia, sem fim à vista e com investimentos contidos (só se compra ou se fabrica material à medida em que as necessidades vão surgindo) só cabem na cabeça de quem acha que a) tudo na economia se resolve magicamente à base de crédito e b) os países ex-comunistas e comunistas são nossos amiguinhos ou, no mínimo, preferíveis à América de Trump. E ainda temos a lata de ficar indignados com a expressão “gripezinha”, utilizada por Bolsonaro, ridicularizando-a, sem perceber que tal atitude implica necessariamente menorizar, com total irresponsabilidade, os efeitos do lockout. Por outras palavras, equivale a dizer: “Este Bolsonaro é mesmo burro! Nós é que somos uns espertalhões. Sabemos que vem aí uma crise. Mas, por maior que seja, tudo se resolverá com magia financeira. No fundo, será somente uma ‘enorme recessãozinha’ económica que dará lugar a nada mais que o ‘colapsozinho’ da Europa, o qual, provavelmente, resultará em bastantes mais mortes do que as que temos visto até agora (por ‘fomezinha’ ou ‘subnutriçãozinha’, ‘conflitozinhos sociais’ ou, quiçá, uma ‘guerrazinha’). Vai ficar tudo bem”.

Mas, então, pergunta-se o leitor: Que raio de estratégia é essa – Kill The Bear – que não se revê na América e, menos ainda, na Europa? É simples, trata-se de um misto:

Fase de Preparação: Delinear um plano para “matar o urso”. Com uma população envelhecida, a Europa (em especial, o sul) nunca poderia adoptar a linha americana e encarar o vírus sem antes se preparar. Uma curta quarentena seria sempre necessária. Porém, não basta conter a doença, nem ir respondendo às necessidades ao longo do tempo. É preciso mobilizar a nação para adquirir/produzir meios em massa (ventiladores, testes, camas), organizar hospitais e recrutar/capacitar pessoas (se for preciso, estagiários ou mesmo estudantes de medicina e enfermagem). Mas, o Governo não tem feito isso? Não. Tem-se focado defensivamente e, embora tenha reforçado os meios, tem-no feito numa dimensão extremamente modesta, um poucochinho de cada vez, conforme as necessidades que vão surgindo e previsões que pouco valem num mundo imprevisível. Por outras palavras, estamos a actuar como se nos pudéssemos dar ao luxo de fazer quarentenas atrás de quarentenas, sempre que o vírus voltar a atacar, investindo em recursos como uma hamburgueria reles poupa em ketchup – com aquela lengalenga: “um pacotinho para cada dose de batatas chega perfeitamente, se for preciso mais, pede depois”. Ora, isto não pode ser. O espírito da nossa quarentena não pode ser de defesa, tem de ser de ataque! Façamos um orçamento de guerra, mobilizando todos os esforços e garantindo o máximo de recursos médicos contra esta pandemia. Tudo numa só quarentena, e em contra-relógio, como se estivéssemos a fazer uma operação de coração aberto (neste caso, o coração é a economia).

Fase de Impacto: Sabemos bem o preço que teríamos de pagar por lockouts intermináveis ou sucessivos. Ao colapso económico e financeiro seguir-se-ia o colapso de todas as estruturas públicas e privadas, incluindo as da saúde. Ademais, ficaríamos à mercê dos inimigos do Ocidente, que semeiam o caos e, ante uma Europa de rastos, bem capazes seriam de lhe declarar guerra. Quantas mortes poderiam daqui resultar – da fome, da falta de meios e bens essenciais, de conflitos sociais e conflitos armados? Não sabemos, mas provavelmente bastantes mais que as causadas por este vírus. Por isso, chega. Com um orçamento de guerra, ao fim de 30 ou, no máximo, 60 dias, teríamos a obrigação de estar muito bem apetrechados (um país europeu ainda vale alguma coisa, ou não?). Imaginemos, então, que estamos em meados de Abril e a nossa quarentena de ataque chegou ao seu termo. Agora, já não dá para voltar atrás. Ainda não temos os meios suficientes? Nunca os teríamos. A única coisa para que a nossa quarentena serviu foi para este momento, o momento de impacto. Chegou a hora de sairmos todos de casa sem mais restrições (excepção feita aos grupos de risco, evidentemente), trabalhar como nunca, enfrentar o bicho, matar o urso… E dizer como Charles Morse (Anthony Hopkins): “Today, I’m Gonna Kill The Motherfucker”.

Nota final: Bem sei que este assunto é complexo e que é fácil dar opiniões sentado no sofá, por isso decidi escrever isto bem deitadinho na minha caminha. Quanto àqueles que dizem que eu só não me importaria de enfrentar o vírus porque sou relativamente jovem e aparente saudável, informo-vos que a estratégia “Kill The Bear” nem sequer é da minha autoria, mas de um amigo meu, que faz parte dos grupos de risco (doença respiratória crónica), e me pediu para publicar esta pequena reflexão. Ora, aqui está!

Maciel Rodrigues, Arq.