A história da banca é marcada por crises de liquidez que moldaram o desenvolvimento do sector durante os últimos trezentos anos. Antes do aperfeiçoamento dos mecanismos de suporte à banca comercial operado pelos bancos centrais durante os últimos cem anos, e da introdução dos fundos ou seguros de garantia de depósitos, generalizados nos últimos trinta, era frequente aparecerem de repente magotes de depositantes às portas de um banco a exigir a devolução da massa. Não que estas corridas já não existam nos dias de hoje, como vimos com o Northern Rock em 2007 e com os bancos gregos em 2015, apenas são mais raras. Estas corridas eram originadas por rumores, tanto falsos como verdadeiros, de que o banco estava, ou iria estar em breve, com dificuldades de fazer pagamentos.

O que determinava a sobrevivência do banco durante uma corrida, mais do que o montante das suas reservas, ou do suporte que podia receber de outras instituições de crédito, era a capacidade de recapturar a confiança dos seus depositantes. Para isso era essencial que o banqueiro tivesse longa e antiga fama de ser varão probo e irrepreensível, pessoa de palavra e com excelente acúmen comercial. Mas isto não chegava, pois todos conheciam pessoas honestas na penúria e grandes comerciantes arruinados. O que era determinante era a capacidade do banqueiro, e dos seus colaboradores, de gerir a psicologia das massas que exigiam a devolução do seu dinheiro. Era a eficácia da comunicação feita em tempo de crise que salvava ou matava o banco.

A comunicação que conseguia estancar a corrida e salvar o banco tinha sempre, como qualquer nota bancária, duas faces. A primeira era o anúncio, alto e a bom som, pelo banqueiro, homem de palavra, que todos os que quisessem levantar os seus depósitos seriam pagos na hora, quando quisessem, fosse hoje ou amanhã. A segunda era operada de modo mais discreto. Enquanto o cliente preenchia, de pé, no guichet, o molhe de formulários da praxe, os assinava e esperava que fossem recolhidas as assinaturas regulamentares de dois ou três funcionários do backoffice dando autorização para o pagamento, o banqueiro, ou os seus colaboradores, semeavam mansinho na mente do cliente duas ideias. A primeira era que dinheiro debaixo do colchão não paga juros, enquanto o depósito sempre vai dando, digamos, 2 ou 3%. A segunda era que dinheiro debaixo do colchão está sujeito a riscos específicos, como ratos e inundações, furtos e incêndios. Quando esta mensagem apelando, não ao altruísmo ou sentido cívico, mas ao interesse próprio do cliente, era bem passada, alguns depositantes desistiam de fazer o levantamento, ou decidiam só fazer um levantamento parcial. Este efeito era depois reforçado quando, ao sair da agência, o cliente contagiava conhecidos e amigos, ainda na fila, dizendo que afinal só tinha levantado uns trocos. A sobrevivência do banco dependia da proporção de pessoas que neste processo, mudando de opinião, passavam a acreditar ser do seu interesse não efetuar o levantamento.

Dadas as notícias e imagens veiculadas durante as passadas duas semanas de prateleiras sem massa nos supermercados, pode-se perguntar, o que é que a grande distribuição aprendeu de trezentos anos de história financeira? A resposta está espelhada na Carta Aberta aos Portugueses da Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição (APED). Nela, a APED procura “passar uma mensagem de tranquilidade, reiterando que não há neste momento sinais de rotura no fornecimento de produtos”. (ênfase acrescentada) Repare-se que ao contrário do banqueiro, a APED não garante nada para amanhã. Apenas não vê neste momento sinais de rotura, apesar das imagens que podiam ser vistas pelos consumidores nos órgãos de comunicação social. Será isto tranquilizador para o cliente habituado, já em tempos normais, a encontrar vazia a prateleira da sua massa preferida? Ou para aquele que está preocupado com a massa que o vai alimentar amanhã?

Talvez por isso, a APED apela “à população portuguesa para a necessidade de ter comportamentos responsáveis e sensatos.” Mas será que é necessário fazer apelos aos portugueses sensatos para que tenham sensatez? E terá algum efeito prático pedir sensatez aos portugueses insensatos? Não será que “o temor do Senhor é o princípio da sabedoria, mas os insensatos desprezam o saber e a instrução”? (Pr, 1, 7)

E, quando no meio desta crise do covid-19, a Direcção Geral de Saúde apela a que se espacem as idas aos supermercados, se possível para uma vez em cada quinze dias, qual é o motivo para pedir que se compre poucochinho de cada vez, proclamando que “é necessário que os portugueses comprem apenas o que necessitam, permitindo que o fluxo de abastecimento ocorra sem sobressaltos”?

Uma prática comercial muito antiga para escoar mais depressa os produtos da loja é gritar “está quase a acabar!” ou “última oportunidade!” Esta técnica foi, aliás, aplicada várias vezes com enorme sucesso no ano passado em Portugal. Sempre que surgiam rumores, tanto falsos como verdadeiros, que a gasolina podia vir a acabar, dava-se uma corrida às gasolineiras e as empresas petrolíferas escoavam e facturavam. O problema que os bancos têm quando enfrentam uma corrida é precisamente passar credivelmente a mensagem de que amanhã ainda haverá dinheiro para todos os que hoje não o levantem. Se há alguma coisa que devem evitar dizer numa ocasião dessas é precisamente: “é necessário que os portugueses levantem apenas o dinheiro que necessitam, permitindo que o fluxo financeiro ocorra sem sobressaltos.” A não ser que, pelo contrário, queiram fazer escoar a massa…

Outro cuidado que os bancos que conseguem sobreviver a corridas procuram ter é não apelar ao altruísmo dos seus depositantes, mas pedir-lhes que cuidem bem dos seus próprios interesses. Ao contrário da comunicação da APED que adverte que “cada um terá de fazer o seu papel para o bem comum”. Como associação empresarial responsável que é, esta advertência sugere a sua desresponsabilização: qualquer rotura de fornecimento de produtos essenciais, insinua, não será devida a paragens na produção originadas pelo covid, nem a roturas na logística causadas pela pandemia, nem à má gestão dos armazéns e expositores das empresas de suas associadas, mas será apenas devida à ganância daqueles portugueses que esquecem o bem comum assim que vêem um pacote de massa numa prateleira de supermercado. Será credível esta mensagem?

Que poderia então a APAD fazer nesta crise que não é sem precedentes? Poderia começar por estudar a história do sector bancário e procurar imitar as práticas dos banqueiros que estancaram a hemorragia de liquidez e pararam as corridas. Como? Garantindo, credivelmente, que não haverá falhas nos stocks, nem hoje nem amanhã. Gerindo as entradas e saídas das lojas de modo a que não se formem filas — filas são, sempre e em todo o lugar, indício de escassez, sinal de que há qualquer coisa que falta ou está prestes a faltar, e portanto actuam como chamariz para que mais clientes despachem as suas compras. Poderia, também, chamar discretamente a atenção dos consumidores para os curtos prazos de validade dos produtos alimentares, e para o limitado espaço para frescos e congelados no frigorífico que têm em casa.

Finalmente, poderia recorrer a outra antiga, e provada, técnica comercial. Tão eficaz para aumentar as vendas de um produto como proclamar que ele está prestes a escassear é anunciar que o seu preço vai aumentar. Assim, o que as empresas associadas da APED poderiam fazer para evitar uma corrida dos consumidores às massas hoje, seria anunciar descontos nas massas para amanhã, e maiores descontos para depois de amanhã. Nas condições atuais isto poderia ser operacionalizado, por exemplo, anunciando uma descida programada de preços de, digamos, 4 ou 5% por semana, todas as semanas durante os próximos três meses, possivelmente com uma subida de preços já hoje para compensar a diminuição futura das margens e para afastar as pessoas das lojas durante esta semana. Não há melhor remédio para fazer os consumidores adiarem as compras que garantir uma deflaçãozinha.

Em que peca a comunicação da APED? Em moralismos a mais e empatia a menos. Se poucos hoje seguem as exortações morais de padres e filósofos, quem é que seguirá os apelos à sensatez e ao bem comum feitas por banqueiros e comerciantes? A um consumidor de spaghetti não o movem moralidades, movem-no pacotes e preços, qualidade e conveniência. E, nestes tempos de incerteza, move-o ou a confiança de achar massa na prateleira, ou o receio do dia em que não a conseguirá encontrar.

José Miguel Pinto dos Santos

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