Um aeroporto internacional é muito mais do que um aeroporto. Há pouco tempo, por motivos profissionais, estive uns dias na Bulgária e passei muito tempo em aeroportos. Do Porto para Sófia fiz escala em Atenas e de Sófia para o Porto fiz escala em Milão/Bérgamo. Fosse eu uma pessoa socialista e teria provavelmente consumido o meu copioso tempo de espera nos aeroportos a maquinar novas fórmulas de tributar as bestas de carga a que alcunharia, com o pudor que caracteriza os calhordas, de contribuintes; sendo, pelo contrário, uma pessoa honrada e com vergonha na cara, limitei-me a fazer o que costumo fazer enquanto espero: ouço Mahler nas suas inquietas sinfonias e observo pessoas nas suas desassossegadas cacofonias.

Nestes tempos de espera, ao reparar numa mão destrambelhada de pai a acenar para uma filha que entrava para a zona de embarque, apercebi-me de uma coisa que se me apresentou à consciência com a evidência nua e a força bruta de uma epifania fenomenológica à maneira daquela raiz de castanheiro de que fala Sartre em ‘A Náusea’: o comunismo é impossível. O comunismo será sempre impossível. O comunismo é a impossibilidade tornada ideia. O comunismo é a impossibilidade da humanidade e a humanidade é a impossibilidade do comunismo. A vida de um é a morte do outro.

Passem uma manhã, uma tarde ou uma noite num grande aeroporto e observem. Os abraços trapalhões, como se braços humanos não tivessem sido concebidos para despedidas entre pai e filha. Os sorrisos condoídos dos que partem e as lágrimas incontidas dos que ficam, dos que regressam e dos que aguardam. A dor da separação e a felicidade do reencontro. Feitas uma da outra. Feitas uma para a outra. Perceberão então por que razão o comunismo sempre atacou a família — e por que razão o comunismo sempre saiu derrotado. A fidelidade familiar, genuína e incondicional, é o sonho de militância dos comunistas, que terão sempre de impô-la, de contrafacção, recorrendo a homens devorados por fomes e a Sibérias devoradoras de homens. Por isso a família é uma comunidade de amor entre livres e o comunismo — a família abortada, a anti-família por excelência —, só pode gerar uma comunidade de ódio entre escravos.

Também aqui não há nacionalidades. O internacionalismo comunista pode vergar nações, mas jamais romperá um cordão umbilical. A Internacional Maoísta cederá sempre lugar à Internacional Mãoista. Enquanto virem num aeroporto uma mão de mãe, de pai, de filho, de irmão, de marido, que acena feita doida varrida, feita cãozinho aos pulos quando o dono chega a casa, o punho cerrado não passará. A sociedade sem classes é impossível enquanto houver uma mão de pai a acenar à filha que já perdeu de vista. Mão de pai que acena e não se cansa é o pior inimigo do punho cerrado que aposta no cansaço dos homens. Mão contra punho. Mão aberta contra mão fechada. Futuro contra Fim da História. A mão de pai continua ali a acenar. O comunismo já perdeu. O comunismo perderá sempre. De todas as vezes. Até ao fim dos tempos.

Naquele dia percebi. Não é a humanidade que espera o fim da História, como pensam os comunistas. É a História que não tem fim porque tem de esperar pelo regresso daquela filha àquela mão de pai que ficou a acenar naquele aeroporto de Milão. Eu vi o fim da História — e não tem fim.

26 de Setembro de 2019

Miguel Granja