Salvador tem meia dúzia de dias. Não tem casa. Não tem colo maternal. Não tem amor de mãe. Tem a caridade da Maternidade do hospital. Tem a enfermeira de turno. Tem a compaixão dos portugueses. Sara talvez tenha saudades da sua mãe, da cachupa, da família, da sua ilha. Sara não devia estar numa cidade estranha. Num país que não a acolheu. Para o mundo, Sara é só mais uma imigrante inconvertida. Marginal que virou criminosa. Duplamente condenada, pela justiça e pelo público. Não sabemos as vezes que Sara se zangou por ver a sua barriga a crescer. As vezes que não falou ao Salvador. No interior da sua tenda, montada nas pedras da nossa calçada, não sabemos quantas vezes Sara chorou.

Talvez desesperada e com pena de si própria. Incapaz de encontrar um rumo. De penalizar as suas próprias escolhas.

Imaginamos as dores que Sara teve no parto, sozinha fazendo força e trazendo ao mundo um filho pelas próprias mãos. Afastada de todos com o plano bem engendrado. Horrorizados, imaginamos o alívio que Sara teve ao despejá-lo. Talvez sem despedida. Nunca o saberemos. Nunca saberemos o que vai na falta de alma dos outros que estão na margem oposta. Gostaríamos de os compreender e trazê-los para a margem de cá. “A única margem que devia de existir. A margem da dignidade. A margem da humanidade.” A margem de quem sente num filho um amor maior que a si próprio. E glorificar quem com pouco, tudo faz, para criar os seus.

“No frenesim egoísta em que o ser humano se tornou”, até desculpamos a atitude vil em abandonar bebés recém-nascidos que noutros tempos eram deixados, em mantas enrolados, na soleira de uma qualquer porta. Como é possível entender um bebé despido, num saco plástico, jogado num eco-ponto amarelo, de uma altura três vezes a sua, deixado para ser triturado pela máquina de recolha do cartão, abandonado pela sua própria mãe?

Não nos importamos com a fome da criança deixada ali ao frio, sem mamar, sem calor, sem amor. Só tentamos arranjar uma plausível razão que desculpe Sara. Aliviamos a consciência na vida difícil da prostituição de quem vive na rua. De quem cá chegou e não singrou, mas somente piorou a sua condição. Coisificamos um recém-nascido. Pensamos naquela mulher que foi apenas mãe e na sua vida sofrida por 22 anos. Faz-se disto um negócio. Damos palco a quem a defende. Afinal quem a condena só pode ser muito mau. Abrem-se mentalidades. Pomos uma nação a pensar nos pobres imigrantes, aqueles que nos dizem que precisamos desesperadamente receber. Depois de quase 10 anos a matar os nossos filhos por nascer. Assistimos incrédulos e coniventes, à visita da Ministra da Justiça a Tires. A desgraçada da Sara, nem devia lá estar…embora ela até agradeça, pois o aborto do seu amor maternal, colocou-a debaixo de um tecto em pleno Inverno, com roupa, comida e cama lavada.

Restam-nos a selfies do presidente Marcelo, que pela primeira vez em muito tempo, escolheu o lado certo, o do pobre sem abrigo, herói esquecido que salvou da morte certa, o indesejado Salvador.

Mas que Mundo é este onde se insiste em vitimizar os criminosos, e esquecer as verdadeiras vítimas? Será que nem um bebé enfiado num saco de plástico para morrer cruelmente vos entra na consciência?! Este texto é uma réplica. Ambígua. Tal como as réplicas de um terramoto. Tal como o corpo do texto e da criança escondida… O lamechas autor da crónica do Público, teve a falha de se esquecer do pobre Salvador, abandonado ao tremor da hipotermia, nesta terra sem vergonha, logo nas suas mais importantes, primeiras 15 horas de vida.

Que venha daí um verdadeiro salvador, pois este progresso, que soa a retrocesso, anseia desesperadamente por uma grande salvação.


Patrícia Sousa Uva

18 de Novembro de 2019