A encíclica papal Fratelli Tutti parece ter sido ignorada pela comunicação social e pela larga maioria da população mundial, católica ou não. Criticada por progressistas e por conservadores, Fratelli Tutti pode muito bem ser o expoente do estilo de encíclica a que a Igreja nos habituou nas últimas décadas. Há muito de Francisco em “Fratelli Tutti”, no que tem de bom e mau.

O Bom

A encíclica papal Fratelli Tutti constitui um dos mais interessantes exercícios de doutrina social da Igreja e um dos documentos mais corajosos da Santa Sé.

A menção às consequências negativas da exploração capitalista, aos sofismas populistas que hoje em dia passam por “alternativas políticas”, não são novidade no discurso do papa e são advertências que os cristãos devem ouvir e receber.

O papa recorda-nos das nossas velhas tradições jurídicas e afasta-nos para longe do individualismo liberal, que considera a propriedade privada como base da nossa civilização, trazendo-nos de volta aos princípios basilares herdados de Roma e Jerusalém. Citamos as suas palavras:

Nesta linha, lembro que «a tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada, e salientou a função social de qualquer forma de propriedade privada». O princípio do uso comum dos bens criados para todos é o «primeiro princípio de toda a ordem ético-social».

O documento leva-nos a reflexões importantes, como a que cada país deve chegar ao seu modelo de desenvolvimento e que não deve haver apenas um modelo, o modelo anglo-saxónico de capitalismo liberal ou o modelo germânico de socialismo de estado, a prevalecer:

Alguns países economicamente bem-sucedidos são apresentados como modelos culturais para os países pouco desenvolvidos, em vez de procurar que cada um cresça com o seu estilo peculiar, desenvolvendo as suas capacidades de inovar a partir dos valores da sua própria cultura.

No capítulo da defesa dos refugiados e dos desprotegidos, recordou-nos o Papa do dever de cada um no auxílio ao Próximo e no debelar dos grandes sofrimentos causados pelas guerras e pelas fomes, mas o Papa foi mais longe que qualquer comunicado oficial ao recordar o mal do tráfico humano perpetrado por muitas das ONG que se dizem humanitárias:

Traficantes sem escrúpulos, frequentemente ligados a cartéis da droga e das armas, exploram a fragilidade dos imigrantes, que, ao longo do seu percurso, muitas vezes encontram a violência, o tráfico de seres humanos, o abuso psicológico e mesmo físico e tribulações indescritíveis.

Não é todos os dias que vemos reconhecida, em público, a existência destas organizações envolvidas no tráfico de migrantes.

Outro ponto interessantíssimo e vanguardista é o reconhecimento da presença dos lobbies de Silicon Valley no controlo da informação:

Não se pode ignorar que há interesses económicos gigantescos que operam no mundo digital, capazes de realizar formas de controle que são tão subtis quanto invasivas, criando mecanismos de manipulação das consciências e do processo democrático.

E se muitos acreditam que o Papa promove uma agenda de autodestruição, deixo aqui outras citações que comprovam que a agenda progressista de Francisco é grandemente exagerada e que a Igreja Católica mantém como postulado da sua acção social, política e apostólica a defesa das nações e da identidade dos povos e o amor ao próprio povo:

As pessoas que emigram «experimentam a separação do seu contexto de origem e, muitas vezes, também um desenraizamento cultural e religioso. A fratura tem a ver também com as comunidades de origem, que perdem os elementos mais vigorosos e empreendedores, e as famílias, particularmente quando emigra um ou ambos os progenitores, deixando os filhos no país de origem». Por conseguinte, também deve ser «reafirmado o direito a não emigrar, isto é, a ter condições para permanecer na própria terra».

(…)

Não se trata daquele falso universalismo de quem precisa de viajar constantemente, porque não suporta nem ama o próprio povo. Quem olha para a sua gente com desprezo, estabelece na própria sociedade categorias de primeira e segunda classe, de pessoas com mais ou menos dignidade e direitos.

(…)

Também não estou a propor um universalismo autoritário e abstrato, ditado ou planificado por alguns e apresentado como um presumível ideal para homogeneizar, dominar e saquear.

Muitas outras coisas podiam ser ditas deste documento, um documento que combate as mentiras do liberalismo, do progresso imparável, do domínio da tecnologia sobre o homem e assume as verdades cristãs da Piedade e do Amor sobre todas as coisas.

Para mim, que o li, aconselho aos que não o leram, que o façam com olhos de ler, não com olhos de criticar. É difícil, tal a poluição literária que nos invade, mas é um exercício possível a mentes honestas.

O Mau

O contexto histórico da Encíclica é o encontro entre São Francisco de Assis e o Sultão do Egipto. Um encontro marcado pela amizade fraterna dos dois. De facto, a palavra mágica desta encíclica é a fraternidade, tanto assim que várias lojas maçónicas afirmaram que Francisco estava a constituir como valor fundamental o princípio maçónico da “fraternidade universal”. A confusão na interpretação dos termos usados por Francisco não é coisa nova nem muito menos inocente.

A encíclica papal Fratelli Tutti é o culminar de um tipo de discurso empregue pela Igreja que em tudo difere das antigas encíclicas que construíram a mundividência católica em termos de acção social e política. Ou seja, em vez de uma linguagem pura, definida e criteriosa, como podemos ver na “Rerum Novarum”, as novas encíclicas papais (à excepção do breve pontificado de Bento XVI, que pareceu voltar a estabelecer alguma disciplina nos termos e nos conceitos) apelam a uma leitura despreocupada, usam termos ambíguos e parecem destinadas a um público geral.

É o próprio Francisco que afirma que embora a tenha escrito a partir das minhas convicções cristãs, que me animam e nutrem, procurei fazê-lo de tal maneira que a reflexão se abra ao diálogo com todas as pessoas de boa vontade.

Francisco não é papa de se confinar ou evitar as luzes da ribalta, mas numa altura como esta, em que se multiplica o número das “encíclicas/comunicado de imprensa”, os católicos pedem mais do que um ”diálogo”, pedem liderança. O espectro do cisma já atingiu várias vezes o papado de Francisco, tanto do lado dos tradicionalistas como dos radicais progressistas. O rebanho está à espera de palavras que o esclareçam sobre as grandes questões que assolam a Igreja: a relação complicada entre o dever de amar o Próximo e o drama das migrações; o dever de honrar a pátria e defender o seu futuro e identidade; a questão dos divorciados; o celibato dos padres; etc.

Em vez disso, a encíclica do Papa Francisco é infelizmente mais um símbolo à incapacidade actual da Igreja de comunicar sem usar os chavões dos tempos modernos.

A tradição católica de mais de mil anos de teologia e filosofia é posta de lado, como sempre é posta de lado por Francisco, para favorecer o discurso dos direitos humanos, das fraternidades universais e da liberdade religiosa, insistindo esta Igreja em regar aquilo que Juan Manuel de Prada chama, muito correctamente, as flores pútridas do liberalismo.

Se, de facto, Francisco consegue fazer uma crítica certeira contra os excessos do capitalismo, se Francisco consegue libertar-nos das grilhetas de um pensamento económico-social materialista e individualizante, fá-lo apenas para achincalhar e provocar uma direita neoconservadora, embrutecida e já de si permanentemente acossada. Não faz, contudo, nada contra uma teologia neomarxista que se levanta dos motins de Portland e Kenosha e ocupa um lugar cada vez mais total, mais implacável, nos parlamentos, nas universidades e nos meios de comunicação do mundo ocidental.

Pelo contrário, Francisco mantém o hábito submisso da Igreja de procurar apelar à esquerda. Apela-se a uma nova visão de Francisco de Assis, uma visão falsa do Poverello de Assis. Mais uma vez nas palavras de Juan Manuel de Prada, surge o fundador dos Franciscanos como um pioneiro da democracia, dos direitos humanos, do ecumenismo, do ecologismo, de uma falsa pobreza estéril sacada a ferros do filme dos anos 60 “Brother Sun, Sister Moon”.

O São Francisco que o Papa Francisco procurou vender à Esquerda é um santo feito de açúcar e televisão. Se não funcionou nos anos 60, não vai funcionar agora. É uma desgraça que a imagem de São Francisco seja assim usada. Quando a encíclica fala do diálogo entre Francisco e o Sultão, esquece-se continuamente de elucidar os seus leitores o principal objectivo de S. Francisco – não estava lá para conversar, mas para converter à luz de Cristo os povos do Oriente. Seria bom que Francisco, o Papa, se lembrasse desta lição do encontro entre Francisco, o Santo e o sultão do Egipto.

Manuel Rezende