
“You’ve felt it your entire life, that there’s something wrong with the world. You don’t know what it is, but it’s there, like a splinter in your mind, driving you mad”.
The Matrix.
1 – Aproximação a um problema:
As mais recentes reinterpretações da gnosiologia platónica tal como foi plasmada na Alegoria da Caverna, frisaram adequadamente não tanto o carácter da estratificação quantitativa dentro de uma mesma graduação mas antes a diferenciação qualitativa, relativa a uma mudança de escala. De facto, quer as faculdades visadas no platonismo, quer os seus objectos, oferecem uma mudança de oitava em que todas as determinações anteriores são suspensas. Da sensibilidade imagética à intelecção noética, dá-se mais uma mutação do que uma evolução quantitativa. Sem adentrarmos na complexidade do problema da metaxy (ou, doutro modo, abordarmos o aspecto da divisão –korismos-) no pensamento platónico, coisa que não teria lugar num texto de jornal que se quer sintético e imediatamente legível, será mais profícuo atendermos ao que já de aquém se nos insinua como uma desconformidade distinguível com a oitava superior. Para isso, num texto desta natureza, melhor será mergulhar na notícia popular que é o filme citado em epígrafe.
Neo é o novo, o inopinado, o desconforme que resiste à uniformização automatizadora numa inquietação de pressentir a inautenticidade do que se pretende como real mas que é, afinal, désert du réel, remetendo para “Simulacres et Simulation” de Jean Baudrillard. Porém, Baudrillard entendeu “The Matrix” como uma codificação paradoxalmente binária (“Le Nouvel Observateur”, 19-25 de Junho de 2003) e, assim, enredada na lógica da simulação que pretendia denunciar, sem se dar conta o filósofo que, essa sua observação, paradoxalmente, antes inscrevia o denunciador da simulação na própria simulação.
O pós-modernismo que Baudrillard pretende denunciar mas no qual fatalmente se inscreve, intenta a salvação da diferença pela aniquilação da lógica da identidade. Com efeito, a partir dos anos 60 do passado século, a tendência inversiva mundial consuma-se com a recepção consumada da escola de Frankfurt, por um lado, e com o pós-modernismo francês que, segundo Foucault, constitui a sua mais fiel interpretação, mormente com a desconstrução de Derrida; mais concretamente, o mundo mudou com a recepção destas filosofias destrutivas que se espalhou como Peste mental à qual chamamos de Derridadaísmo, pois se o ser foi substituído pelo acontecer, numa incessante diferenciação que demite quaisquer “identidades” ou “unidades”, assim obrigando a uma desreferenciação ética e instaurando um relativismo pando, terrenos férteis para autolatrias mascaradas de humanismo, tudo isto sucede num sem-sentido defendido pelo contraponto formal a quaisquer sentidos, tal o do dadaísmo. O juízo de Baudrillard de que o filme visado seria assim demasiado binário, na lógica do tertium non datur, precipita-o no pós-modernismo derridadaísta que pretenderia contrapor. Não obstante, o filme assume Baudrillard como luzeiro no que de muito aproveitável ele oferece, a saber, a identificação de uma circunstância hiper-real, sem disso deduzir que seja inescapável ou inextrincável, como demanda o relativismo pós-moderno e, por contágio, Baudrillard. A rejeição do filme como eficaz denunciador da simulação, não coloca o denunciador primeiro como refém do objecto da sua denúncia?
2 – O problema sem aproximação possível:
Se o mapa jamais é o território pois não se confunde uma representação abstracta-fixa com o concreto de inopinável mutação (sob risco de, andando num espaço e atendendo ao mapa e não ao território, cairmos num buraco não mapeado), aquilo que hoje enfrentamos é não apenas a dificuldade da hipérbole representativa mas a pulverização de todas as representações. A re-presentação deixa de ser aqui entendida como fazendo parte da dinâmica fundamental do conhecimento humano que permite depois, na transmissão cultural, uma devolução do enunciado para a coisa enunciada (a outra consciência que não a do transmissor), para passar a ser mera imagética não remissiva. Seguindo a lição de Baudrillard, se dissimular é fingir não ter o que se tem e simular é fingir ter o que não se tem, a comunicação simuladora destrói o carácter referencial da representação deixando esta de estar referida à realidade. Com efeito, perde o signo a analogia com a realidade, fica desapossado de valor referencial e passa a gozar de estatuto autónomo. É tido como tanto mais verdadeiro quanto menos referente ao real porque independente de concessões lógicas, porque imbuído da fuga que é a diferenciação contra-afirmativa. Tudo menos algo é o axioma revalidável até termos uma depuração vazia, um nada que remete para nada, um nada puro, depurado de realidade. Mas se isto é assim numa esfera metafilosófica, não o recebem/percebem as gentes assim. O nada não remissivo é assumido como verdade indisputável.
Contudo, o ponto fundamental será ainda perceber quanto disto será efectivo e não uma constelação de pseudo-princípios teoréticos cuja vinculação à verdade, ou à correspondência entre a construção teórica e os factos experimentáveis, seja prescindível por impertinente. Isto é, esta possibilidade de uma irrealidade por simulação é uma mera simulação ou deve ser atendida como efectiva possibilidade? Poderão as nossas vidas estar a decorrer numa trama simulada? E, se sim, com que estrutura? Poderíamos conhecer a realidade de tal irrealidade? Teríamos de descer o degrau de uma teoria do conhecimento para o domínio político, em sentido lato, em ordem a dilucidar esta dúvida.
Atendendo a este repto, servem as indicações acima a reflexão sequente: se a macropolítica é uma simulação, é a criptopolítica, a existir, uma dissimulação. Sob a capa da tricolor francesa, a democracia com o emblema humanitário teria sido o Cavalo de Troia para infiltrar progressivamente uma hiper-realidade que sustenta oligarquias cada vez menos visíveis, defendidas que estão por detrás da saturação de visualidades ecrânicas tidas pelo real. Estamos, estaríamos muito depois dos prenúncios esquematizados por McLuhan e o seu determinismo tecnopsicológico que enfatizava ser o meio a mensagem, embora se exija, para uma cabal compreensão, recuar um pouco neste excurso rápido e sintético.
O modelo epistemológico da modernidade, hegemónico, subentende o homem como sujeito e o mundo como objecto. É isto que, com a aceleração que recebeu pela tecnociência na última metade do passado século, e com a hiper-realidade totalizadora resultante que forma a pós-modernidade derridadaísta, poderia estar na causa da ruína civilizacional presente, caso ela pertencesse ao domínio da simulação representativa. O modelo epistemológico moderno concede privilégio ao experimentum. Passa-se de um argumentum ex verbo a um argumentum ex re, como se a coisa pudesse orientar o argumento que é, em si, verbal. Trata-se de uma mundividência coisificada, de uma dessignificação do verbo como hegemónico do ser humano, do estar sendo humano ou do vir a ser humano, mas fundamentalmente de um embuste porquanto o acesso à coisa se faz através do verbo pelo que o argumentum ex re é sempre, afinal, um argumentum ex verbo, mas de um verbo que, neste caso, se coisificou, com ancilar submissão, a uma visão coisal que se pretende objectiva, o que redunda numa perigosa dogmática sobre o que haja. A suposta libertação do verbo é, portanto, uma sua redução tirânica e enclausurante numa ordem de sentido unívoca ou, pelo menos, de sentido reduzido. Este modelo epistémico vive, pois, de uma representação reduzida do que haja. O conhecimento representativo toma-se por verdade, o certo-calculado dentro deste paradigma cognoscente, como o que há, como o que é. O ser passa a ser uma construção totalizante, um estante de simulacro e tudo se despenha numa imagem referenciada, afinal, ao percepcionante, resultando daqui um crasso humanismo fechado. Fechado não apenas ao abrir-se à vida por parte do homem mas fechado ao acesso do homem ao próprio homem. Ora, pelo dito, com a actual possibilidade técnica de uma difusão quase instantânea, houvesse uma criptopolítica baseada neste modelo e estaríamos, porventura, sem possibilidade de discernir a realidade da irrealidade.
Descendo das cumeadas, na circunstância mundial hodierna tudo poderá ser o que não é pois a desreferenciação parece ter atingido o patamar máximo do acima descrito por possibilidade. Dar-se-ia esta desreferenciação por programação de uma dissimulativa criptopolítica que se valeria da macropolítica simuladora em ordem a criar uma hiper-realidade quase inescapável. Este quase é de fundamental sublinhado uma vez que nos separa da tese de Baudrillard e nos devolve à coincidência com a filosofia clássica e com o mote fílmico. Num estabelecimento distópico, fosse a hiper-realidade inescapável e este texto, mesmo na sua configuração hipotética, breve e meramente indicativa, não seria possível. Porém, se isto fosse assim, se estivéssemos num domínio em que a publicidade noticiosa pudesse ser desreferenciada do acontecente, tudo seria possível para reconfigurar o mundo ad libitum. Estaríamos, estaremos, em aporia.
3 – Suposição:
Até algo como esta pandemia indubitável que tem matado as nossas famílias, hoje reduzidas a três ou cinco pessoas, poderia ser um simulacro, uma ficção. Todavia, se assim fosse, conseguiríamos discerni-lo? Larguemo-nos a supor; não há como o expediente hipotético para ir além da situação sem ter de percorrer a tramitação de um pé atrás do outro quando o caminho se faz de abismos. Quando a situação é aporética, como a que foi acima descrita, o mais avisado é usar o longo-alcance tipicamente humano de imaginar, valermo-nos da facultade telescópica criativa, da hipótese não enquanto instrumento sistemático ou explicativo mas sobretudo heurístico, conquanto não percamos a valência de espelho presente no termo especulativo, que ainda nos garante uma verdadeira re-presentação. Avancemos pois nesta suposição de imaginação especulativa para sairmos do ínvio.
Na supradita hiper-realidade hipotética, podia este ser um pesadelo simulado, uma mortandade só de números, de critérios distorcidos, uma notícia falsa a denunciar notícias falsas que pretendessem remeter para factos. Podíamos estar a viver uma pandemia mental, representativa, nem tanto uma projecção distorcida nas paredes da Caverna mas antes uma referência pulverizada em milheiros de reflexos sem referente, uma hiper-realidade pura como aquela que nos é mostrada no filme que Baudrillard tem por primário. Os testes poderiam ser, então, um símile da novela “Curioso Impertinente” de Dom Quixote, uma profecia auto-realizada, uma simulação perfeita que deviesse em mortos concretos por consequência macabra do medo ante o Papão factício. Quantos mais testes mais confirmações da virose suposta pois os testes teriam a mesma natureza do vírus sem que alguém o pudesse compreender. Esta profecia auto-realizada em curto-circuito, seria sustentada pelo medo desumanizador, por um lado, e por uma mundividência materialista, positivista, fundamentalmente cientista, que a distorção iluminista impôs, por outro. Se isto fosse assim, a igreja universal científica, com os seus adoradores alienados, filhos do modernismo, da Revolução Francesa, do iluminismo, do marxismo, do pós-modernismo francês e de todas as prisões intituladas “liberdade”, essa igreja, diríamos, poderia estar nem tanto a equivocar intencionalmente mas antes a reproduzir enganos com o alcance do horizonte. Bastaria a um órgão central macropolítico, acreditado e plenipotenciário, dimanar um pequeno conjunto de informações falsas (previamente dispostas pela maçonaria criptopolítica), de definições, protocolos e critérios equívocos, e, face à natureza reprodutiva e representativa do mundo, habituado ao inconcreto do simulacro e da simulação, já distante de referências remissivas para referentes à vista, teríamos aquilo que Baudrillard intuiu, uma hiper-realidade imperscrutável, inverificável, inescapável. Viveríamos no miasmático-não-binário, inabordável na diferenciação sem identidade encontrável, a não ser que houvesse alguns que, à maneira da tradição platónica, como no filme citado, se não deixassem ludibriar, embora correndo os riscos descritos para os libertadores na Caverna. Os media passariam a ser nem o conteúdo mas a própria mente processante teleactivada em cada indivíduo desaparecido numa massa global sem autonomia pensante. Cada um, um co-mentador da mente global teledifundida. Poderia isto acontecer, pois, sem que os agentes de difusão fossem cônscios do processo (também eles co-mentadores-reprodutores do dito Centro autorizado e, assim, da engenharia criptopolítica detrás do biombo), dar-se-ia o crime perfeito, a mentira imperceptível. Consolidar-se-ia a fraude como realidade e a realidade, quando pronunciada, como fraude inatendível ou já criminalizável, sempre integrada no conceito vazio “teorias da conspiração” (conceito instilado pelos agentes de fraudação e redito por fraudados como mantra justificador do acontecente e, sobretudo, como tampão para a atitude verdadeiramente científica de indagação e de subordinação do professado a um juízo crítico). Os bastardos de Esculápio seriam os primeiros ludibriados, mesmo num domínio que pareceria remeter para o seu foro específico pois a realidade seria apresentada com abstracções de números, protocolos, diagnósticos confundíveis com realidades outras e o modelo epistémico em que estes tinham sido formados tornara-os em amanuenses de prontuários com tiques napoleónicos, incapazes de ver além dos manuais ou decretos sempre actualizáveis. Funcionários das finanças com o caduceu impendido do cachaço por símbolo de nobreza curricular, seriam justificadores da fraude, ínscios legitimadores da mentira. Por detrás do Centro macropolítico os velados criptopolíticos, por detrás destes o antigo divisor, o negador, o enganador cuja doutrina tem a sua essência confusa, indeterminada, feita de compossíveis. Ante a indeterminação da informação os pós-modernos problematizariam ad infinitum, jamais afirmando sob risco de aniquilar alguma possibilidade, crime capital. O paradigma da complexidade derridadaísta estaria defendido por todos os infectados da pandemia mental, seriam labirintos dentro de labirintos, estando Ariadne dormente, sem possibilidade de doar fio. O Minotauro-holográfico seria então omnipresente.
Ainda perdendo tempo nesta suposição vã (mas que fosse real, pelo supradito, seria tomada por irreal), se tal se desse, poderia tal paroxismo simulador aproximar a humanidade de uma ulterior rejeição da hegemonia de modelos de simulação como base do mundo. Fosse a crise vencida pela evidenciação e talvez tivesse de se repensar todo o modelo epistemológico em que assenta o mundo hodierno, talvez daqui deviesse, afinal, deste modelo platónico, uma solução platónica e um modo menos ilusório ou mais platónico de viver. Face a isto, se isto assim fosse, a tendência fact-checking seria de um actualíssimo passadismo porquanto o futuro não se estearia em factualizações, nessa reificação do historicismo despenhado a positivismo cientista e enamorado do fenómeno suposto, fundar-se-ia o futuro em poesia pura i.e., em acção pura. Os factos depurados perceber-se-iam caducos, inquinados, frangíveis. Quereríamos verdade além de aluimentos, quereríamos o real-realíssimo verdadeiro até ser incarnacional, num life–checking de intimidade vivida, testemunhada, agida, sida. Viríamos a querer uma verdade espiritual.
Todavia, fosse isto assim, antes da possibilidade de ultrapassagem, ofereceria a distopia vivida um cenário grotesco, porventura inimaginável a nós que o não vivemos porque isto não é assim! Se isto assim fosse, para conhecermos o recesso íntimo das gentes, os invisíveis segredos da ipseidade, outrora só acessíveis a uma intimidade profunda, bastaria ligarmos a televisão. A pandemia mental não teria de ser especialmente convincente ou justificada pois os mundanos, a maioria, estariam já convencidos a priori. O mundano, no seu conformismo obediencial-acrítico, justifica o mundo independentemente do que suceda, discute febrilmente a política, a perfectibilidade do estado de coisas in fieri, mas bate-se pela defesa do mundo com a febre dos místicos e com a suposta certeza de um iluminismo setecentista. Os mundanos não são enganados pelo mundo, são agentes do mundo, filhos obedientes de seu pai, seus símiles e servidores. Por isso, se atendendo ao modelo em equação, seriam as fontes informativas o vírus inverificável, não sendo necessária mais do que uma declaração para que os mundanos a reproduzissem de modo uniforme e automático, com gritos de liberdade e de diferença fundamental. Por outro lado, serviriam os mundanos de exemplo para compreender que o ilusório e o iludido seriam o mesmo numa hiper-realidade que houvesse tomado as massas. Se só o Centro nevrálgico fosse, na nossa oitava (porque os outros estariam invisíveis-além), conhecedor do ludíbrio, serviria o sistema mundial para a reprodução infinita disso mesmo como indisputável verdade. A “inteligência” meramente reprodutiva, hermenêutica, funcional, entenderia o exercício da inteligência radical como ameaçador da circunstância senão mesmo como ininteligível e errático porque a-normal. Demais, a predisposição para a disquisição entorpecer-se-ia ante a reprodução da narrativa única expressa sob a aparente variedade de pensáveis consentidos na histeria teledirigida. A humanidade estaria num estado de toxicodependência e seria a ilusão o seu tóxico. O ambiente mental que o teria consentido seria a paixão do positivismo que ilude ter ultrapassado todas as paixões, não havendo nada mais ofuscante para a luz natural da razão do que o iluminismo, mormente os neo-iluminismos em curso, plexos de enganos que invariavelmente redundam em variações sobre o positivismo. Neste passo, neste cenário que felizmente é só hipotético, a civilização exteriorizara-se, ecrãnizara-se, espectacularizara-se em finíssima pelicularidade, anverso sem parte de trás, fora sem dentro, útero deitado à rua, às avessas, gritado de ser só visível. Todos quereriam ser tele-visivos pois a única ontologia sobrante seria a da visualidade. Quem não fosse visível, sobretudo de longe, por muitos, desapareceria. E desaparecer, num mundo que se faz de aparências, seria deixar de ser. Paradoxalmente, o rosto aqui estaria a mais, a máscara seria a identificação visualmente identificável, o rosto é demasiado afirmativo, a apresentação do rosto é fascista, mata as possibilidades. A sensibilidade, a ética, a mente, tudo no homem passaria a adequar-se a esta fúria centrífuga de desprivatização do si-mesmo para representações entificadas do eu. Seria o triunfo da persona ante a morte de todos os actores. A inteligência hermenêutica, tentando interpretar o acontecente através de uma apreciação geo-política e economicista do passado, não conseguiria uma meta-análise do modelo de simulação e tudo decairia num nada totalizante.
4 – Ergue-te e anda:
Tudo isto que supomos teria origem na destruição da identidade. As filosofias da diferença teriam destruído qualquer reclamação identitária; quando se perde a identidade fica-se refém da alteridade do não-ser, firmado no argumento de não anular qualquer possibilidade. Mas que identidade teria sido a nossa?
Por um lado a filosófica. Destruída a filosofia pela sua representação universitária que exclui filósofos e que começou por ser bastião de sofistas ruminantes em hermenêuticas infindas e frustes, até se acantonar numa mera técnica conceptual (já nem de pensamento), como é hoje a filosofia analítica e toda a filodoxia restante, ficaríamos destronados do dote prometeico, restando animais de quinta.
Por outro lado, e sobretudo, a Cristã. Sobretudo, dizemos, porque o Cristianismo subsume na sua formalização a filosofia grega e porque é revelação, culminância da via mistérica sempre assumida pelos génios de antanho mas desprezada pelos asnos coevos. Foi o Cristianismo lapidado, cuspido, crucificado pelos filhos da filodoxia acima descrita, orientados pela criptomaçonaria cujo fito é, desde sempre, o domínio único dos povos. A supranacionalidade, a indiferenciação dos indivíduos mascarada de diferença, a imposição de uma sociedade em oposição a uma comunidade fraternal, foram sempre vectores do que por velamento deixamos dito como criptomaçonaria, o bastião criptopolítico, os influenciadores dos destinos dos povos patrocinando as inflexões desejadas com a vilíssima pecúnia mas que sempre mantiveram um desígnio de poder trans-financeiro. A perversão da identidade filosófica e o enfraquecimento do Cristianismo teriam sido, assim, procurados para preparar um império de simulação representativa como o que foi descrito.
Sem filosofia e sem herança Cristã, violado a dentro pelos preceitos da criptomaçonaria, o homem ocidental teria deixado de poder perceber quem estava detrás do biombo. O orientador dos orientadores. O negador, o divisor. Tudo isto passaria a ser uma história para o homem anistórico. O que é verdade? O que são factos? O circo democrático, co-mentado incessantemente pelos sem-mente, a Covid 19 como maior ameaça de sempre. Não haveria nada que nos pudesse acudir, a não ser Aquele por detrás de tudo, de tudo à frente. Já não saberíamos pensar. Já não saberíamos quem somos. Mas haveria um momento último de desespero em que todos viríamos a ser prece, abatendo-se nesse instante todas as telas de projecção que tínhamos por pilares delimitadores do mundo.
Quando a indiferenciação atinge o humano, esbate-se a imago Dei. Deus É-nos Diferença Pura porque Pura Identidade, por isso e especialmente nisso indizível, por mais apofático que seja o regime proposicional. Quando a diferença entre indivíduos desfeitos em pessoas é exteriorizada até à (des)caracterização fisionómica, fica o homem desdivinizado, perde a sua quididade, profanado a só corpo. A diferenciação lógica conduziu à indiferenciação psicológica, tal como a santa indiferença nos espirituais aproxima da Diferença Pura que resulta da Identidade Suprema. Um só-corpo, indiferenciado de outros corpos, é cadáver. Cadáveres com medo de morrer. A tragicomédia tomaria conta do que havia sido a vida. Seria o i-mundo a simulação da vida.
Houvesse Cristãos em número suficiente, ainda, e isto não continuaria. Mas o Cristianismo confundiu-se com o cordeirismo que nenhuma relação tem com O Agnus Dei e protestantizou-se com a adaptação ao mundo quando não mesmo procurando o triunfo no mundo. Ora o Cristianismo é contra mundum (contra este mundo-imundo que escolhe Barrabás) em defesa da Vida. Os inconformistas ficaram todos, paradoxalmente, fora do Cristianismo, fora da sua Casa entretanto ocupada. Haviam de atender ao usucapião. O Cristianismo legítimo, aquele que detém as chaves da arca-Igreja que pode flutuar no grande dilúvio, é esse o único antiviral salvífico, oferecendo a Tradição, a transmissão identitária que concede a vera diferença a viver; isto poderia ser dito se o que se supõe fosse efectivo.
O afirmacionismo covidesco constituir-se-ia como negacionismo da inteligência humana, ajudando à instalação da pandemia mental, cavalo de Troia para a entronização do regime representativo e dissimulativo últimos em que o indivíduo passaria a ser imagem longínqua de um si-mesmo proibido.
Sem filosofia, com o Cristianismo em dormência (embora jamais findo), seria a humanidade, preparada para o sono fundo, negacionista da afirmação extrema que é ser homem. Fora o homem entorpecido na sua sensibilidade através de uma hiperexcitação toldante, cerceado na liberdade com notícias de caminhos marcados por promessa nominal homógrafa, iludido por uma história universal nunca havida com histórias da história que passariam a ver a factualização efectiva como “historietas”. Poderíamos dizer ao último dos cadáveres, se esta hipótese funeral sobreviesse:
“Fizeram-te crer que a religião é de descrer e tu creste, fizeram-te crer que não há experiência espiritual, que essa categoria está reservada a testar um telefone melhorado e tu creste. Poluíram-te com a insanidade democrática de complexidades burocráticas, escolas políticas inúteis, de muitos nomes e acontecimentos que foste aprendendo a comentar, como se comenta o futebol, com um fervor estúpido, fizeram-te acreditar que a filosofia era aquilo que imediatamente compreendias, pois como podia ser coisa outra se és tu a medida universal de tudo? Odiaste quem pudesse mais que tu, sendo tu o metron, seria sempre esse um hybrista insolente, um ultrapassante do concelho que és tu, da municipalidade circunferencial do teu umbigo. Instruíram-te, nos últimos anos, a ser revolucionário do mundo parado e a ver os que denunciavam esse lodo mortal como racistas, xenófobos, homofóbicos, e o mais de anátemas. E agora… lavas as mãos, pões a máscara, ficas em casa”.
Felizmente que isto não é assim e que Neo pode ir comer castanhas assadas sem o binarismo cromático da decisão acerca de qual comprimido tomar. Doutro modo, teria de haver um Diógenes que, conta o seu homónimo Laércio, ante alguém que aventava argumentos a favor do imobilismo, se ergueu e andou em torno.
Pedro Vistas, Veneza, Itália.