“O que é a verdade?” perguntou um dia Pilatos a Jesus de Nazaré (Jo 18:38). Mas, não dando-Lhe tempo para responder, foi-se embora. Nem sempre é fácil esperar pela Verdade. Ou ouvi-la. Ou encará-la…

Existem atualmente duas maneiras de encarar a verdade[1]. A tradicional, aquela que sustenta a filosofia grega e a religião Cristã, a Universidade clássica e o método científico ocidental, é a chamada perspetiva da correspondência: ‘um pensamento, teoria ou opinião, é verdadeiro ou falso dependendo da sua correspondência com a realidade[2].’ É com base nesta visão que a maioria dos dicionários[3], quer em papel, quer online, ainda vão definindo a palavra verdade. Por exemplo: “verdade (lat. veritate), s. f.  qualidade do que é verdeiro; qualidade pela qual as coisas se apresentam como são; realidade.”[4]

Embora esta correspondência da ‘verdade’ com a ‘realidade’ fosse largamente consensual até há cerca de duas gerações atrás, hoje pode causar ofensa. Por exemplo, classificar de ‘burguês’ um dirigente do PS ou BE que se considere um verdadeiro socialista e que, quando não está no parlamento ou na assembleia municipal, está a fazer negociatas por ajuste direto, a especular no imobiliário com a conivência e apoio do pelouro do planeamento municipal, ou a explorar o trabalho dos ‘colaboradores’ nas suas empresas, não é ‘politicamente correto’.

A outra é a perspetiva do consenso. Segundo esta visão, cada vez mais em voga, a verdade mais não é que ‘uma construção social’, algo que não consiste na concordância entre o intelecto e a realidade, mas que se estabelece pelo consenso social, voluntario ou imposto. Isto é, a verdade é aquilo que uma sociedade concorda ou impõe como sendo verdadeiro. E sendo a verdade uma construção social, ela pode servir ou como meio de exploração e domínio, ou como instrumento de libertação.

Assim, nesta visão, a associação feita pelo hétero-patriarcado branco entre ‘maternidade’ e ‘felicidade’ mais não passa de uma forma de opressão das mulheres, sem qualquer correspondência com o que em geral as mulheres sentem quando são mães. Por isso torna-se urgente e importante criar o consenso de que ‘maternidade’ significa ‘opressão’ de modo a libertar as mulheres de preconceitos antigos e assim as livrar da opressão do hétero-patriarcado.

Se o leitor acha que esta segunda definição de verdade um pouco artificial, desprovida de realismo[5] e algo esquisita, está a ser reacionário e está a pôr em causa o novo consenso necessário para a construção da ‘nova sociedade’ socialista. É que, segundo a própria perspetiva do consenso, é necessário que haja consenso à volta da perspetiva do consenso para que a perspetiva do consenso possa ser considerada verdadeira. E o drama é que, enquanto houver reacionários que acreditam que a teoria da gravidade é verdadeira, vão continuar a morrer pessoas que saltam do telhado, e enquanto houver retrógrados que achem que o socialismo é utópico vamos a continuar a ter capitalistas. Até no PS. E no BE.

Daí a importância da unicidade para a construção de uma sociedade socialista: só quando todos acreditarmos que saltar do telhado não implica uma queda é que as pessoas que saltam do telhado deixarão de morrer.

José Miguel Pinto dos Santos, Professor Universitário.

U avtor não segve a graphya du nouo AcoRdo Ørtvgráphyco. Nein a do antygo. Escreue coumu qver & lhe apetece.

[1] Verdade: correspondência de pensamento ou afirmação com a realidade; (neo-warxismo) mistela de desejabilidade individual e aparência social; em ambos os casos, instrumento de mudança neste mundo de aparências.

[2] Realidade: segundo o neo-warxismo, aquilo que o Comité Central define ser; nesta perspetiva, a essência da realidade é a do vácuo moldável; no Tomismo, aquilo que encontra quem salta do telhado convencido que a teoria da gravitação é uma mera opinião, o denominado ‘encontro com a realidade’ em antros reacionários e em círculos financeiros; aquilo que tem odor, como o cheiro a suor depois de um dia trabalho.

[3] Dicionário: ferramenta literária usada na repressão da criatividade léxica e na imposição da uniformidade de aceção vocábulica; instrumento de luta política e de domínio sobre as massas—já Humpty Dumpty percebia que poder sobre a edição dos dicionários é condição necessária para domínio político e social: “‘When I use a word,’ Humpty Dumpty said in rather a scornful tone, ‘it means just what I choose it to mean — neither more nor less.’ ‘The question is,’ said Alice, ‘whether you can make words mean so many different things.’  ‘The question is,’ said Humpty Dumpty, ‘which is to be master — that’s all.’” (Lewis Caroll, Through the Looking Glass, 1871) Consequentemente, é natural que numa futura sociedade socialista os dicionários ou serão online, permitindo ao poder central a fácil alteração das definições conforme as circunstâncias ou, se em papel, disponibilizados com lápis e borracha e impressos no formato de “preencha os espaços-em-branco”.

[4] Dicionário Universal da Língua Portuguesa, Texto Editora, 1995, p. 1448.

[5] Realismo: a arte de pintar a natureza tal como apreendida por um pardal; a interpretação literária da vida social tal como percetível a uma galinha; descrição de uma experiência mística tal como vivenciada por uma toupeira.