Vítima de um atentado que não o teve por objectivo, sem legado palpável, intelectualmente da mais absoluta, perfeita e redonda banalidade, a deificação de Sá Carneiro diz muito mais da pobreza e cobardia da direita portuguesa que das virtudes do homenageado.

Desaparecido há quarenta anos, Francisco Sá Carneiro continua a ocupar lugar de honra no panteão de referências da direita portuguesa. Do PSD ao Chega, passando indirectamente pelo CDS, todos se reclamam tributários, discípulos e continuadores de algo que o fundador do PSD terá começado. Ora, para quem não teve experiência do Portugal convulsionado do pós-25 de Abril e pode dar-se ao luxo da análise imparcial destas décadas recentes, a reverência em que se tem a memória de Sá Carneiro surge como um mistério. Reverência porquê? Se deixou herança, ela é a co-paternidade deste Portugal: Portugal empobrecido, Portugal de emigração, Portugal de dívida, Portugal sem resquício de voz, soberania ou relevância no mundo.

Homem do “centro-esquerda”, como repetidamente se assumiu, Sá Carneiro queria o PSD como partido social-democrata na tradição do SPD alemão: um socialismo democrático e não-marxista. Disse-o claramente em “Poder Civil, Autoridade Democrática e Social-democracia”: “A sociedade que defendemos é uma sociedade socialista, sem distinção de classes, em que o homem seja liberto da exploração, da alienação e da opressão” (pp. 20-21). Obrigá-lo na morte à posição de padroeiro da direita não é só absurdo. É injusto – sobretudo, é falso. Há pior: o rigor e a franqueza obrigar-nos-iam a reconhecer que, no que importa, o que Sá Carneiro queria para o país foi o que o país teve ao longo destes cinquenta anos. E, nisso, a sua visão do futuro em pouco se distinguia da de Mário Soares, do PS ou do restante PSD.

Muito pelo contrário, integrava-se perfeitamente na ideia de país das elites pós-1976. O maior dos choques por que Portugal passou no século XX foi o desmembramento súbito da sua unidade territorial, que compreendia a presença em África desde o século XV e na Ásia desde o século XVI. Em ano e meio, de 1974 a 1975, Portugal abdicou da posição mundial que construíra ao longo de cinco séculos de esforço ininterrupto; esforço sempre tido como fundamental para a sobrevivência do país e que, como tal, superara revoluções, ideologias e mudanças de regime.

Na mais crucial das questões, Sá Carneiro era parte de um consenso que se revelou desastroso. Em entrevista ao Expresso, logo a 20 de Julho de 1974, dizia: “Creio que, acima de tudo, talvez esta solução permita acelerar, no essencial, a urgente descolonização, da qual depende a resolução de muitos outros problemas.” E queria a “descolonização” rápido. A 22 do mesmo mês, ao Comércio do Porto, explicava: “A descolonização e a resolução do problema do Ultramar não podem, é evidente, aguardar até lá [ou seja, até à eleição da Assembleia Constituinte]. Estou convencido que esta foi uma das razões da crise. (…) Há que descolonizar rapidamente.” No maior conflito travado pela nação portuguesa no século XX, as simpatias do fundador do PPD/PSD não estavam, decididamente, com Portugal. Em 13 de Agosto de 74, ao Povo Livre, jornal oficial do partido, dizia: “Era e é urgente acelerar o processo de libertação dos povos coloniais relativamente a um poder político estranho e a interesses que não são os seus. O passo decisivo nesse sentido foi dado com o anúncio da aceitação da independência e do início do processo de transferência de poderes. (…) Daí a impossibilidade de se aguardar, para tomar essa decisão, o resultado de um plebiscito a organizar.” Para Sá Carneiro, as independências eram para acontecer, quisessem os povos o que quisessem. A destruição da unidade nacional portuguesa, a traição a quase quinze milhões de portugueses ultramarinos – brancos, negros, Han, indianos e insulindianos – e a entrega, sua e dos seus territórios, à guerra civil e ao pesadelo de regimes brutais não mereceram dele qualquer oposição. Pelo contrário, esse cataclismo – certamente o maior sofrido por Portugal desde Alcácer-Quibir – teve em Sá Carneiro um cúmplice de plena vontade e convicção, com todas as consequências morais que daí é possível extrair.

A verdade é que Sá Carneiro não tinha a formação intelectual ou patriótica para compreender a História, a essência, a natureza ou o futuro do país. Cabeça pobre, não possuía a mais pálida noção das grandes linhas de força que desde sempre ordenaram e deram coerência à nossa política: não percebia as razões da nossa independência, e a importância para aquela do oceano e dos territórios de ultramar; não compreendia que, privado da relação com o espaço do antigo império – que podia ter continuado em democracia, quer através da solução federal proposta por Spínola, quer noutra arquitectura – a sobrevivência de Portugal como Estado livre acabaria fatalmente comprometida. Ou talvez percebesse e não isso não o preocupasse: de facto, a soberania nacional não foi nunca uma preocupação de Sá Carneiro. Pelo contrário, o líder do PSD adivinharia, por certo, a incompatibilidade entre a integração na Europa comunitária e a permanência em África, mesmo que os locais desejassem continuar portugueses – daí a sua fixação com as independências desse por onde desse, com ou sem plebiscitos, preferissem os locais o que preferissem.

Para ele, o futuro era o Mercado Comum europeu, onde a Portugal caberia a posição de protectorado democrático e próspero. Mas Sá Carneiro não percebera nada. Não entendia que, numa Europa em que Portugal nada contaria e em que as grandes decisões lhe seriam impostas de fora, a democracia nunca poderia ser mais que uma formalidade: os portugueses votam, mas o seu voto pouco pode contra as determinações da Comissão, do BCE e das forças que verdadeiramente dominam a União. Nem compreendia que esse Portugal, amordaçado e submetido ao poder de economias muito mais avançadas – Portugal sem moeda sua, indústria sua, decisões suas e mercado interno seu que permitisse a autonomia económica – não poderia também ser próspero. O Portugal de 2020 é o Portugal de Soares. E é também o Portugal de Sá Carneiro, resultado da mesma ignorância da nossa História, da mesma ingenuidade suicida e da mesma desistência de viver como país soberano e senhor do seu destino.

É surpreendente, olhando para o que Sá Carneiro efectivamente representava, que persista o seu endeusamento. À falta de melhor explicação para essa religião bizarra, ficam-nos as da psicologia. Ela tem raiz no medo asfixiante, de ideias e sobretudo de auto-afirmação, que continua a castrar a direita portuguesa. A direita não admira Sá Carneiro, e muito menos o seu projecto – pequenino, miserabilista, inimaginativo e deprimente – para o país. Alça-o à posição de figura inspiradora por não ter outra melhor. Ou antes, por continuar a evitar reclamar melhor referência: e isso por ignorância, terror de censura pela esquerda ou, provavelmente, ambos. Se, quarenta anos passados, a morte de Sá Carneiro e de Adelino Amaro da Costa continua a ter de ser esclarecida, não deixa de ser verdade que a relação infantil e francamente irracional da direita com Sá Carneiro tem de acabar. Portugal precisa de uma direita que preste. Não a terá enquanto ela venerar espantalhos.

Rafael Pinto Borges, Presidente da associação patriótica Nova Portugalidade