Neste artigo tentarei responder a duas questões: Porque é importante confiarmos na Bíblia e porque é importante termos um bom argumentário para a existência de Deus. Ver-se-á que a Bíblia requer um lugar cimeiro na disputa pelas verdades que constituem a fé cristã. Ela tem de estar acima da tradição e das sensações. No entanto, para ela ocupar este lugar cimeiro precisamos de confiar nela como theopneustos (soprada por Deus), e isso começa com a existência de Deus. Isto implica que o argumentário tem de ser externo à Bíblia, ou seja, estamos completamente entregues à razão e à experiência sistematizada com o mundo – coisas que tradicionalistas e místicos rejeitam. A exposição que se seguirá tem como público alvo aqueles que se identificam como cristãos – estas questões não são aplicáveis àqueles que vêm de outras religiões ou são ateus.
Àquele que defende um sistema de crenças chamamos de apologeta. À organização e sistematização da defesa chamamos de apologética. Na defesa do sistema cristão há dois itens que têm de estar debaixo de especial atenção, a saber, Deus e a Bíblia. Mas antes de avançarmos para estes dois, vejamos primeiro duas abordagens à apologética cristã: i) o pressuposicionalismo e ii) o evidencialismo.
i) Neste tipo de apologética assume-se a verdade de todas as proposições que compõem a religião cristã. O objetivo destes apologetas é mostrar aos adversários que sem este conjunto de proposições eles não conseguem defender a inteligibilidade das suas posições. Em menos palavras, o mundo não faz sentido sem estas proposições. É como alguém que argumenta pela inépcia da razão – se o argumento for bom, na verdade não pode ser porque a razão é inepta; se for mau, então essa pessoa está errada.
ii) Por seu turno, aqui não se assume a verdade de qualquer proposição* que compõe a religião cristã. Aqui reconhece-se que estas verdades são prováveis. Como tal, o grau de convicção que colocamos sobre a verdade de todas as proposições cristãs – se formos racionais – não pode ser igual ou superior àquele que colocamos sobre a nossa própria existência ou do mundo externo. São verdades obtidas por cadeias de raciocínio probabilístico, e quanto mais estas se alongam, menos provável se torna a conclusão.
Aqui optaremos por ii), uma vez que i) tem muitos problemas teóricos logo à partida, que não os vou desempacotar por uma questão de espaço. Nesta apologética não temos problema em nos sujeitar às convenções de argumentação. Consideramos que a lógica, a matemática e procedimentos de avaliação de dados empíricos** são conquistas do intelecto humano que não são de deitar fora. Consideramos também, ao contrário dos pressuposicionalistas, que estas ferramentas de descoberta não requerem a verdade de todas as proposições cristãs para serem capazes de, na sua correta aplicação, nos desvelar gradualmente a realidade.
Dito isto, qual a conexão entre Deus e a Bíblia? Para podermos confiar na Bíblia primeiro temos de ter um bom argumentário para existência de Deus. Esta necessidade pode-se esclarecer através do seguinte argumento:
1. Deus existe. 2. Se Deus existe então os milagres são possíveis. 3. (De 1 e 2) Logo, os milagres são possíveis. 4. Os milagres podem ser usados para atestar o que tem proveniência e caráter divino. 5. O Novo Testamento é historicamente fiável. 6. No Novo Testamento Jesus Cristo alegou ser Deus incarnado. 7. Os milagres desempenhados por Cristo têm uma conexão especial com Deus. 8. (De 4, 5, 6 e 7) Logo, é historicamente seguro que Jesus Cristo tem proveniência e caráter divino. 9. Jesus disse que podíamos confiar na palavra de Deus. 10. A palavra de Deus está contida no Antigo Testamento. 11. A palavra de Deus foi passada aos apóstolos pelo Espírito. ————————————————————– 12. (De 9, 10, e 11) Logo, podemos confiar na Bíblia
O trabalho do apologeta evidencialista é defender todas as proposições não inferidas. Estas são 1, 2, 4, 5, 6, 7, 9, 10 e 11. Como podem constatar, a proposição 1 é a mais importante de todas. Se Deus não existe, os milagres não são possíveis. Se não são possíveis, não há o que seja para atestar. Não havendo o que seja para atestar, o sobrenatural não existe, e por implicação vivemos num mundo estritamente material. Se esse é o caso, temos de aceitar as hipóteses de alucinação das testemunhas das obras de Jesus. E se aceitamos estas hipóteses a nossa religião fica montada em cima de alucinações, e não é mais que um fenómeno psicológico que serve para gerir o terror existencial – ansiedades e ataques de pânico que ocorrem quando se pensa que o mundo não tem sentido, que vamos todos morrer e que a morte pode chegar a qualquer momento, e assim por diante. Mais importante, a Bíblia passa a ser um livro de ficção sem qualquer ligação com a ordem do universo. Deixa de ser informativa para a nossa moralidade ou para o que podemos esperar quando deixarmos esta vida.
Aqui ficámos a perceber a importância de termos um bom argumentário para a existência de Deus, mas e então a confiança na Bíblia? Se pusermos a nossa confiança noutros itens, não precisamos deste trabalho argumentativo todo. Há duas respostas cristãs que procuram secundarizar a Bíblia. Derivando consequências destas respostas podemos perceber a importância do nosso cânone religioso. Uma vem de Tradicionalistas, outra vem de Místicos. Ambos são céticos do que a razão nos pode dar no que concerne Deus, o sobrenatural em geral e a moralidade, e por isso não acham piada à coisa da apologética. Porém, diferem no que substituem pela razão.
Os primeiros afirmam que devemos depositar a nossa confiança na tradição. Devemos ser crédulos com o testemunho da Igreja. Chegamos às verdades de Deus pelo conhecimento que vai sendo passado ao longo das gerações. Não precisamos de argumentos que sugiram a existência de Deus, e a Bíblia ainda que seja a palavra de Deus, acreditamos que o é porque é isso que nos chega da tradição. Esta posição tem problemas. Havendo mais do que uma reivindicação da verdadeira tradição, como é que decidimos qual escolher? Pela credulidade do testemunho não se chega lá. A partir do momento que os apologetas destas duas tradições começam a fazer argumentos históricos ou argumentos bíblicos deixaram o seu tradicionalismo. Os argumentos históricos desaguam na fiabilidade histórica da Bíblia, e depois começam as disputas pelo que está escrito nela. Mas se estão a disputar os conteúdos da Bíblia, para a discussão ser inteligível primeiro têm de justificar porque podem confiar nela como revelação de Deus, e aqui voltamos à proposição 1.
Os segundos afirmam que devemos depositar a confiança nas nossas sensações. As verdades de Deus são comunicadas pelo Espírito dentro de nós, i.e. nós sentimos a verdade. A fé cristã deve, por isso, ser montada sobre aquilo que sentimos. Sendo assim, não precisamos de argumentos que sugiram a existência de Deus; nós sentimos a sua existência. Do mesmo modo, nós sentimos que podemos confiar na Bíblia, e sentimos também que interpretações estão corretas e erradas. O problema aqui é semelhante ao dos tradicionalistas. Se aparece outro místico a dizer que sente diferente, como é que decidimos qual das sensações é a correta? Nem sequer temos como comparar sensações, uma vez que são privadas a cada um. A partir do momento que as partes em disputa começam a recorrer à Bíblia, e a servirem-se de métodos hermenêuticos objetivos, abandonaram o seu misticismo. Novamente, para esta discussão ser inteligível, primeiro têm de defender a fiabilidade revelatória da Bíblia e isso irá levá-los eventualmente para a proposição 1.
Estes dois casos mostraram que sem a primazia da Bíblia não há como defender as diversas doutrinas que caracterizam a fé cristã, i.e. o sistema cristão mencionado acima. Contudo, como vimos, para a disputa das doutrinas fazer sentido é preciso argumentar pelo seu caráter revelatório, e isso não é possível se Deus não existir.
* – Da mesma forma que temos números e numerais, temos também proposições e frases declarativas. Frases declarativas, por seu turno, são aquelas pelas quais afirmamos ou negamos qualquer coisa, p.e. “O Manuel esteve em casa” ou “A Maria leu um livro”.
** – Dados que estão relacionados com a experiência, i.e. que provêm da observação (do contacto ou familiarização com a realidade que nos rodeia).
João Miranda
5 de Dezembro de 2019