Na família sempre se falou do “primo Viriato” como uma daquelas personalidades misteriosas cujo aparecimento é tão súbito como fugaz. Ao jeito dos aventureiros do século XX soube viver perigosamente e radicalmente até acabar perdido nas intrincadas guerras de poder. Viriato Francisco Clemente da Cruz seria uma daquelas maldições da família, fruto produzido pelas contradições no intrincado mundo colonial português. Uma figura algo quixotesca e sonhadora, romântico e aventureiro, ou simplesmente imprudente, o homem ou o mito – é o que poderíamos perguntar. Figura paradoxal e idealista terá reunido em si um pouco de tudo.

Não foi caso único de dissidência e de martírio mas representou muito das contradições de uma geração rebelada, produto de um mundo e de um tempo que aspirava à transformação do homem e à revolução completa, e que acabou vítima das próprias convicções e atitudes.

Viriato era neto de um português, natural da Guarda, de Escalhão, que no final do século decidido a embarcar na aventura colonial rumou a Angola. Os irmãos Madeira Clemente (o meu trisavô César um deles) forjaram fortuna e vida em terras africanas, terra que amaram intensamente e jamais voltaram a trocar.

A mãe de Viriato, Clementina Clemente, reconhecida como legítima pelo pai, tal como a prima, a minha bisavó Emília Clemente, integravam-se na sociedade colonial. Quando Viriato nasceu, em Porto Amboim, no ano de 1928, Angola ainda era uma terra em construção. As circunstâncias da sua vida não diferiam muito do percurso da pequena burguesia angolana dos anos 30 e 40. Contudo, as dificuldades manifestavam-se. O pai de Viriato, Abel da Cruz, apesar de comerciante bem sucedido, pouco acompanhou a família, desconheço o porquê do atrito e do abandono subsequente a que condenou a mulher e os filhos. Esta ausência da figura paterna terá deixado marcas no jovem Viriato e terá moldado muito da sua visão do mundo. Apesar das dificuldades, tal não impediu os irmãos Viriato, Celestina, Gilberta e Bebiana de estudarem e, apesar de dificuldades na infância, conseguiram singrar na vida, não se pode de todo dizer que fossem “oprimidos pelo sistema”. Estavam integrados na sociedade colonial e beneficiavam de muitas das suas regalias.

No Liceu Salvador Correia, Viriato despertou para a sensibilidade artística, ali florescia o espírito crítico e desenvolviam-se os talentos de toda uma geração. A literatura passou a ser a sua grande paixão. Cultivou uma poesia marcada pelo idealismo africano e sensível às realidades da vida. O domínio da lírica lusa acompanha o cultivo do dialecto africano. Expressivo no estilo, logra aproximar a palavra poética da linguagem comum, exercício nem sempre conseguido pelos autores mas que Viriato maneja com mestria.

Alguns versos denotam um cunho neo-realista, influência comum naquela geração, desenvolvendo a discursividade coloquial num efeito quase fotográfico. É o universo da sociedade crioula, de certa forma – e quase implicitamente – acaba por denotar as especificidades da colonização portuguesa que um lusotropicalismo poderia reivindicar.

No poema “Makezu”, por exemplo, acompanha a vida comum na cidade, cruzando a língua portuguesa com o dialecto na busca pelo que consideravam ser a “angolanidade”. Pessoalmente tenho maior apresso por estes versos, pela intimidade que o envolvem. O poema descreve a avô Ximinha, na verdade a Tia Francisca, quintandeira que muitas vezes era vista nas ruas de Luanda com os trajes típicos e as grandes cestas que carregava. Sei que viveu até uma idade bastante avançada e era bem conhecida na família:

“O pregão da vó Ximinha Ta mesmo como seus panos Já não tem a cor berrante Que tinha nos outros anos”

Ou o poema “Namoro”, onde, sobre o manto diáfano da lírica passional, revela uma sensibilidade apurada, cruzando a simbologia poética com elementos particulares da identidade africana. A descrição dos primeiros versos do poema são do mais subtil e cristalino que se podem ler:

“Mandei-lhe uma carta em papel perfumado e com a letra bonita eu disse ela tinha um sorrir luminoso tão quente e gaiato como o sol de Novembro brincando de artista nas acácias floridas espalhando diamantes na fímbria do mar”

Uma poesia que, ora mais combativa (Mamã Negra (canto da esperança)), ora de traço neo-realista (Sô Santo, Makezu), não deixa, contudo, de salientar uma certa especificidade angolana (do qual também Makezu, Romance da Menina da Roça ou Serão do Menino são exemplos), entrecruzando elementos de exotismo.

Não só vivia para a poesia, Viriato, pelo que contam testemunhos, desenhava primorosamente. O gosto pelas artes e pelas letras é um traço comum daquele lado da família, a prima de Viriato, Emília Clemente de Sousa (minha bisavó) era uma pianista nata e mulher de profundas leituras, casada com um homem com igual gosto e talento para as artes. Inclusive as irmãs da bisavó eram dadas às letras e às línguas e chegaram a formar-se em germânicas.

Vitimado pela tuberculose Viriato é obrigado a abandonar os estudos. Como homem da casa, na ausência do pai forçado a ocupar aposição de chefe da família, terá tido a responsabilidade maior. Dele dependia o sustento, obrigando o poeta a procurar um emprego estável, ao mesmo tempo que perdia (e invejava) o percurso de um conterrâneo, Agostinho Neto, que viera para Portugal estudar medicina. As dificuldades e privações e o ambiente intelectual que fervilhava em leituras variadas de cunho revolucionário (principalmente os neo-realistas e, certamente, Marx) contribuíram para o seu desenvolvimento político, na afirmação do que reivindicavam ser o “nacionalismo angolano”, repetindo os libelos que circulavam um pouco por toda a África desde o final da Grande Guerra.

Em 1948 lança o movimento “Vamos descobrir Angola” e, dois anos depois, é um dos fundadores do “Movimento dos Novos Intelectuais de Angola”. Em 1950 encontramo-lo na Huíla onde trabalha como administrador na fábrica Singer, sem dúvida uma posição aprazível, permitindo que vivesse confortavelmente. Depressa volta a Luanda onde passa a trabalhar como contabilista, altura em que ajuda a lançar a revista “Mensagem”. Incansável e autodidacta, Viriato estuda muito, lê muito, escreve bastante e forma a sua consciência política, investindo em polémicas que permitem afirmá-lo como nome combativo na luta colonial. Mas é preciso dizer, Viriato não estava integrado num núcleo de oprimidos, pelo contrário, ele, e muitos dos da sua geração, conviviam bem e de perto com o mundo colonial onde também ocupavam posições não menos meritórias.

A poética depressa o conduzirá à política. Em 1955, ainda em Luanda e juntamente com António Jacinto, Ilídio Machado,Domingos Van-Dúnem, Aristides Van-Dúnem e Mário António, funda o Partido Comunista de Angola (PCA).

No Hotel Magestic, em Luanda, redige ao longo de duas semanas o texto que mais tarde se converteria no Manifesto do MPLA. Em 1957, em pleno fervilhar das eleições de Humberto Delgado, Viriato abandona Angola e ruma a Portugal. Em Lisboa é recebido por Amílcar Cabral, mas por pouco tempo. Depressa encontramo-lo em Paris, onde se junta a Mário Pinto de Andrade, amigo de sempre e influência constante.

Incansável, segue para Roma onde está presente no I Congresso dos Escritores e Artistas Negros, realizado em Abril de 1959.

De regresso a Angola confronta-se com problemas na sobrevivência do PCA e das contradições que o afligem: por um lado, a falta de apoio do Partido Comunista Português, que acusava o PCA de ter copiado os estatutos do Partido Comunista Brasileiro, por outro, a rejeição do projecto por muitos dos revolucionários angolanos.

Ciente da necessidade de reestruturar o movimento revolucionário angolano, logo em 1960, Viriato aparece em Conacry, ao lado de Mário Pinto de Andrade, Matias Miguéis, Lúcio Lara, Hugo Azancot de Menezes e Eduardo Macedo dos Santos, como um dos fundadores do MPLA. Nessa altura consegue apoios da embaixada da China e, em final de Agosto, acompanha a delegação do movimento na visita a Pequim, onde recebe os primeiros apoios financeiros.

A permanência enquanto Secretário-geral do MPLA seria breve. A chegada de Agostinho Neto reverteria a situação e adensaria o atrito entre ambos os homens. Viriato perderia essa batalha e acabaria expulso do partido. Na verdade parecia já sentenciado desde o início. Foi um idealista, mais do que um realista, foi poeta, mais do que político, faltou-lhe o lado frio e racional dos factos e o maquiavelismo para manobrar os interesses. Neto reunia os pressupostos para se afirmar e criar alianças internas que acabaram por o consagrar como líder. A própria violência de que Viriato foi vitimado às ordens de Neto é disso um sintoma, ou assim descreve Carlos Pacheco nos estudos em torno da figura do primeiro presidente de Angola. Na família o percurso de Viriato tornou-se um mistério, apenas conhecido, muito obscuramente, através de relatos das irmãs.

Segue-se um período errante, encontrando refúgio na FNLA, uma visita muito passageira. Em 1966 recebe o convite das autoridades chinesas para se instalar em Pequim. Ali acompanha de perto a Revolução Cultural.

A partir deste acontecimento, começam uma série de contradições. Na família sempre se falou em Viriato como um “moderado” que aspirava a tornar Angola uma terra inclusiva, onde todos pudessem conviver num novo estado independente, mas isso é uma opinião familiar que deve mais à simpatia do que à análise rigorosa. Dizia a avó que com Viriato como dirigente a descolonização não teria sido tão destrutiva. Tenho dúvidas quanto a isso, Viriato não se distinguia muito do seu irmão-inimigo Agostinho Neto. A verdade é que Viriato não deixou de ser um radical e o apoio inicial (diria mesmo, e apesar de tudo, um apoio permanente) à revolução chinesa denota-o.

Em 1967, de regresso à China, elabora um relatório onde diz não estarem reunidas as condições objectivas para uma revolução socialista em África. Constatou talvez a dura realidade da evolução da Revolução Cultural? Acordou para uma realidade controversa e muito contrária aos seus ideais? Foi um despertar súbito que o arrancou do sonho idealista?

A verdade é que Viriato reivindicou sempre ser fiel ao marxismo original, perdendo a argumentação em raciocínios filosóficos muito provavelmente incompreendidos pelos dirigentes chineses. Além do mais, cometeu alguns erros diplomáticos ao procurar tomar partido dentro da Revolução Cultural, num tempo em que as perseguições políticas estavam na ordem do dia.

As cartas de Pequim, publicadas em 2003, revelam muito do isolamento que sentia e do abandono a que fora condenado. O desejo recorrente de abandonar a China torna-se, de dia para dia, mais penoso e impossível. As autoridades chinesas não se conformavam com a relutância de Viriato.

Desesperada, a mulher, Maria Eugénia, derruba um busto de Mao Tse-Tung num hotel em Pequim, na esperança de que o acto levasse à expulsão de toda a família. Em vão, acabam todos exilados para os arrabaldes da grande cidade, onde a situação precária era ainda mais grave e a miséria mais intensa.

A saúde delicada, tão danificada pela tuberculose da juventude, a vida errante e quixotesca, as várias fugas e privações constantes a que se submetera, tinham deixado as suas marcas. A alimentação precária, ou inexistente, na China revolucionária, as condições de miséria absoluta agravavam o seu estado. Viriato da Cruz morreria em Pequim, em 1973. Como sepultura restou uma vala comum e como legado o esquecimento completo pelos seus próprios conterrâneos.

Muito mais tarde, a mulher e a filha conseguem sair de Pequim. Desconheço como fugiram. O certo é que, em 1975, quando a minha avó e bisavó – e toda a restante família, acompanhando um grande êxodo – se preparavam para abandonar Angola, naquele ambiente de caos marcado pela “descolonização exemplar”, a mulher e filha de Viriato chegavam a Luanda. Ali, a viúva, relatou muitos dos horrores da vida em plena revolução chinesa e descreveu o pesadelo daqueles anos de chumbo.

Em suma, Viriato semeou as sementes da própria destruição, a vida dele é um caminho cruzado para o abismo. Parece irónico e trágico que a actuação do vate idealista e romântico tenha condenado a própria família, quer no exílio na China, quer relativamente aos primos e parentes em Angola. As próprias irmãs seriam alvo de perseguição e, no rescaldo da fuga – um salve-se quem puder – acompanharam a nossa família para Lisboa, onde viveram no Lumiar juntamente com a minha avó e tios. Parecerá quase uma comédia retratar que as senhoras Clemente da Cruz mandavam rezar missas pelo desaparecimento de Agostinho Neto, o qual sempre referiam com repulsa e ódio, salientando abertamente: “Matou o nosso irmão” (o que não será objectivamente verdade, foi contudo vítima de um processo político e da luta pelo poder do qual colheu o fruto envenenado e mortífero). Quando finalmente o presidente Agostinho Neto morreu abriram uma garrafa de champanhe para celebrar – o que pode sugerir um acto inverossímil e quase caricato, mas toda aquela situação sugeria uma tragicomédia inesperada e do mais sórdido: a descolonização, a guerra civil, a fuga, tudo marcou aquela geração. Foram vidas de desenganos e ilusões, de promessas e derrotas. As senhoras viveram até ao fim no ressentimento e na mágoa da terra e do irmão que tinham perdido e nunca o esconderam, nem nunca completamente se conformaram.

Certamente Viriato acabou vítima dos próprios ideais, como Robespierre vitima da guilhotina que alimentara, como Machado Santos assassinado pela própria república, como Trotsky derrotado no famigerado braço-de-ferro com Estaline, e tantos outros exemplos… lembra a velha máxima de que a revolução devora os seus próprios filhos.

Contudo, mais do que o político caído em desgraça fica a memória do poeta. É esse poeta quem eu gosto de recordar.

Daniel Sousa

19 de Novembro de 2019