No 87º aniversário do Holodomor, neste quarto Sábado do mês de Novembro, comemora-se na Ucrânia e noutras nações o Dia da Memória do Holodomor. O genocídio ocorreu em 1932 e 1933, e foi provocado intencionalmente pela União Soviética. Historiadores apresentam números distintos, mas as vítimas terão sido entre os dois e os dez milhões.

O Parlamento Português reconhece o genocídio desde Março de 2017, apesar dos votos contra do Bloco de Esquerda, Partido Comunista Português, Partido Ecologista “Os Verdes”, e a abstenção do Partido Socialista.

Neste Dia da Memória do Holodomor, o Notícias Viriato publica a entrevista com a aluna Catarina Lopes.

Catarina Rosa Lopes, de 18 anos, realizou um trabalho, um dos únicos feitos por alunos no ensino secundário, sobre o “Holocausto Ucraniano” com o reconhecimento da Embaixada da Ucrânia em Portugal.

Actualmente estudante de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade Católica, onde obteve uma bolsa de mérito, Catarina estudou numa escola de currículo internacional International Baccalaureate.

Catarina, “chocada” com o facto do Holodomor não pertencer ao programa escolar, dedicou-se a fazer o trabalho, não obstante de pressões que sofreu de professores e encarregados de educação, e apresentou-o à comunidade escolar e à Embaixadora da Ucrânia em Novembro de 2019.

“Fiquei chocada pelo facto de este acontecimento estar praticamente ausente dos programas de História (…) alguns professores de História não acreditam na existência do Holodomor e tentaram mesmo passar essa ideia aos alunos aquando deste evento. Temos assim, um negacionismo histórico em tudo semelhante ao que alguns grupos de pró-nazis têm em relação ao Holocausto. Tenho muitas dúvidas que este tema seja sequer abordado na esmagadora maioria das escolas portuguesas.”

Apresentação da aluna no dia 19 de Novembro de 2019. Fonte: Página de Facebook da Embaixada da Ucrânia

Qual foi a motivação para realizar o trabalho?

O programa de História do International Baccalaureate (IB) dá bastante relevo à Revolução Russa – pois foi quando, pela primeira vez, um país tentou implementar os modelos económicos e sociais do comunismo fora do mundo ideal descrito nos livros. Ao falar sobre esta matéria com o meu pai, que gosta muito de conversar comigo sobre estes assuntos, ele falou-me do Holodomor, inclusive mostrou-me um filme muito interessante sobre este tema chamado “Bitter Harvest” (Colheita Amarga) do George Mendeluk, ofereceu-me também uns livros sobre a Revolução Russa do Richard Pipes, que é professor Catedrático de História na Universidade de Harvard, e incentivou-me a aprofundar o assunto.

Como nas aulas de História, tínhamos bastante tempo livre para fazermos o que quiséssemos, aproveitei e aprofundei este tema com leituras e alguma pesquisa pela Internet. Quanto mais descobria, mais impressionada ficava. Não só com a enorme quantidade de mortes – que segundo algumas fontes, chegaram aos 10 milhões, como pela forma cruel e desumana como estas pessoas morreram – confiscaram-lhes todos os alimentos, com a intenção clara e premeditada, de lhes infligir um sofrimento prolongado, matando-os lentamente à fome. Fiquei igualmente chocada pelo facto de este acontecimento estar praticamente ausente dos programas de História.

Por estas razões, decidi contribuir para a divulgação deste tema. Por sugestão do meu pai, contactei a Embaixada da Ucrânia em Portugal e a Direcção do colégio onde estudava e propus-me organizar um evento para divulgação do «Holodomor». Este evento consistiria na realização de uma pequena palestra e de uma exposição fotográfica. A ideia foi muito bem recebida, quer pela direcção do colégio, nas pessoas do dono, o Eng.º. Armando Simão – infelizmente recentemente falecido, e da Coordenadora do IB da altura, a Profª Carla Davis. Também pela parte da Embaixada da Ucrânia, a receptividade foi grande, disponibilizaram material para a exposição e, para a palestra e honraram-nos com a participação da própria Sr.ª Embaixadora Inna Ohnivets.

O Holodomor consistiu exactamente no quê?

O Holodomor é uma palavra ucraniana que significa “extermínio pela fome”. Para percebermos como surgiu, temos de perceber o enquadramento histórico em que ocorreu.

As pessoas têm a ideia de que, com a Revolução Russa de Outubro de 1917, o comunismo na URSS foi implementado de uma assentada. Não foi bem assim. Houve várias forças que se rebelaram e se opuseram à implementação do comunismo resultando em guerras civis que só terminaram em 1921 com a vitória das forças bolcheviques. Nessa altura, já com a oposição esmagada, Lenin tentou implementar o comunismo teórico baseado na abolição da propriedade privada. Os resultados económicos foram tão desastrosos que, pouco tempo depois, muitas medidas tiveram de ser revertidas – a famosa NEP (New Economic Policy). A pequena propriedade privada e mesmo as microempresas voltaram a ser permitidas, bem como alguma liberdade no valor dos salários. Estas medidas deram algum oxigénio à moribunda economia da altura. Chegamos a 1924, ano em que morre Lenine e tem início uma luta feroz pela sua sucessão, sendo Estaline e Trotsky os principais protagonistas. Em 1929, esta guerra é definitivamente ganha por Estaline quando os seus agentes conseguem assassinar Trotsky a golpes de picareta, o que nos mostra o nível da democracia que praticavam.

Uma vez Trotsky afastado, Estaline dedicou-se a eliminar fisicamente os seus antigos camaradas políticos de forma a não ter oposição e retomar a implementação da “revolução socialista”.

Assim sendo, alarga o confisco de terras aos pequenos agricultores, que vêm a sua sobrevivência ameaçada e se revoltam. Esta revolta foi particularmente sentida pelos Ucranianos dado que grande parte da sua economia e modo de vida estavam baseadas nestas pequenas explorações familiares.

Estaline decide castigar a Ucrânia e fazer dela um exemplo. Por isso, de forma consciente e premeditada, decide matar pela fome milhões de ucranianos. Assim, entre 1932 e 1933, as fronteiras ucranianas foram seladas e todos os alimentos foram confiscados aos camponeses, deixando morrer em agonia idosos, homens, mulheres e crianças.

As fontes disponíveis estimam que o Holodomor tenha matado pela fome entre 2 e 10 milhões de pessoas. Os horrores foram imensos. Na pulsão pela sobrevivência, as pessoas recorreram inclusive ao canibalismo. O Holodomor foi, portanto, um genocídio usado como instrumento de tortura de todo um povo, com o objectivo de aterrorizar e submeter a restante população da União Soviética. O Holodomor foi um crime contra a humanidade e não pode ser esquecido.

Catarina Lopes com a Embaixadora da Ucrânia, Inna Ohnivets. Fonte: Página de Facebook da Embaixada da Ucrânia

Porque é que o Holodomor é tão esquecido?

Penso que o Holodomor é intencionalmente esquecido porque nos mostra a verdadeira face do comunismo. Num país e num mundo que tenta branquear o socialismo, o Holodomor é um acontecimento que convém ser esquecido.

A esquerda não se cansa de falar nas dificuldades passadas no tempo de Salazar, mas esquecem-se de fazer a comparação com a situação vivida – na mesma altura- pelos povos onde vigoravam os regimes políticos e económicos defendidos por essa mesma esquerda, como era o caso dos ucranianos. O Portugal da II República, por mais problemas que tivesse, era um paraíso comparado com o pesadelo Estalinista que se viveu – exactamente na mesma época – na URSS, e na Ucrânia em particular. Os crimes contra a humanidade cometidos pelo regime comunista de Estaline foram tão horríveis como os praticados pelo nazismo de Hitler, aliás como foi recentemente reconhecido pelo Parlamento Europeu, em Setembro de 2019.

Se temos no ensino básico em Portugal manuais escolares que apresentam Che Guevara e Estaline como grandes libertadores de povos oprimidos, é realmente difícil encaixar o Holodomor neste tipo de narrativa, dai que este acontecimento tenha sido sistematicamente esquecido.

Existem mais trabalhos sobre o Holodomor feitos por alunos do Secundário?

Que eu tenha conhecimento, não. Aliás, provavelmente pelas razões atrás referidas, este tema não faz parte do programa de História do ensino nacional, pelo que não é sequer abordado.

Além disso, como pude constatar no colégio onde fiz o secundário, alguns professores de História não acreditam na existência do Holodomor e tentaram mesmo passar essa ideia aos alunos aquando deste evento. Temos assim, um negacionismo histórico em tudo semelhante ao que alguns grupos de pré-nazis têm em relação ao Holocausto. Por estas razões, tenho muitas dúvidas que este tema seja sequer abordado na esmagadora maioria das escolas portuguesas.

Monumento dedicado ao Holodomor no Museu Nacional do Genocídio Holodomor, na capital ucraniana, Kiev.

Tiveste represálias?

Quando propus a ideia, tive todo o apoio, por parte da Direcção e em particular da Profª Carla Davis, na altura, Coordenadora do IB. No entanto, quando Profª Carla Davis foi substituída, as coisas alteraram-se. Alguns professores do colégio começaram a mostrar o seu desagrado pelo tema e tentaram demover-me da sua realização. Houve inclusive uma situação muito caricata, que hoje me faz rir mas que na altura me deixou bastante apreensiva: A minha professora de História, com um ar muito sério, avisou me que, caso eu avançasse com esta iniciativa, dado a Embaixada da Ucrânia estar envolvida, iria fazer com que meu nome passasse a constar numa lista do KGB, que iria tentar prejudicar-me e que eu seria proibida de alguma vez visitar a Rússia. Sei que isto parece surreal, mas aconteceu. Eu própria não percebi se a ideia era assustar-me ou se a professora acreditava mesmo nisso.

Depois, quando informei a escola que a embaixada tinha sugerido iniciar a palestra com a exibição de um pequeno vídeo, excerto de um documentário sobre o Holodomor, começaram a colocar várias objecções. Sob o pretexto de que esse vídeo era demasiado violento, excluíram da palestra os alunos do 3º ciclo. Foi realmente um pretexto, porque anualmente todos esses alunos assistem a um documentário sobre o Holocausto, onde são exibidos vídeos com imagens igualmente dramáticas. Depois, alegando que o Holodomor não fazia parte do curriculum nacional, a nova Coordenadora do IB quis também excluir da palestra os alunos do nacional, limitando a assistência aos alunos do curso internacional. Claro que a intenção era diminuir a importância do evento. Só com a intervenção do meu pai junto do dono do colégio foi possível voltar a ter como assistência todo o secundário.

Mesmo assim, poucos dias antes do evento, o meu pai ainda recebeu um mail da Coordenadora do IB, supostamente reencaminhando o mail da mãe de um aluno, em que esta se indignava com a organização de um evento sobre o Holodomor, alegando que este genocídio nunca tinha existido e solicitando o seu cancelamento.

Como se vê, não foi fácil, a pressão foi muito grande e, algumas vezes dei por mim a pensar se não teria sido melhor escolher um tema menos polémico, tipo a ecologia ou a reciclagem, mas não desisti, com o apoio dos meus pais consegui concretizar o que me propus.

Quero deixar claro que os obstáculos que referi existiram apenas da parte de alguns professores, pois da gestão de topo do colégio tive todo o apoio, e a Srª Embaixadora foi bastante bem recebida pelo filho do dono do colégio o hoje administrador Dr. Diogo Simão.

Excerto do Documentário “The Soviet Story”, que foi apresentado na escola, apesar de queixas de professores e encarregados de educação.

Que lições retiraste deste trabalho?

A principal aprendizagem que este trabalho me proporcionou, foi que é muito difícil separar a História da ideologia. Fiquei impressionada com o facto de um acontecimento que ocorreu há menos de um século e do qual há registos fotográficos e até vídeos com testemunhos de sobreviventes, poder gerar tanta controvérsia sobre a veracidade dos factos. Existem efectivamente forças que procuram remeter estes acontecimentos para o esquecimento e com isso influenciar a maneira de pensar das pessoas, sobretudo daquelas em idade escolar.

A História não é definitivamente uma disciplina neutra. A forma como a História é ensinada nas escolas influência definitivamente a maneira de pensar das pessoas e o seu posicionamento político no futuro.

É precisamente para evitar que este tipo de acontecimentos voltem a ocorrer que é imprescindível assinalá-los de forma regular e solene, para não serem esquecidos.