Já virou moda ter uma opinião, por mais incipiente que seja, sobre a recente polémica da “identidade de género”, papagueando qualquer coisa que fique bem, ou comentando o que se ouviu no telejornal, quem sabe noopinion-checking de um polígrafo qualquer.

De um modo geral, o tema divide-se entre os que julgam tratar-se de uma questão de respeito por quem é diferente, colocando a subjectividade do indivíduo acima de tudo e os que optam pela prudência, principalmente no que toca a crianças no ensino escolar. Aqui a “política” tem conseguido mexer com o brando povo, uma vez que já não se trata de uma questão que se relegue à costumeira alienação irresponsável do “cada um faça o que quiser”, tratando-se agora da “minha filhinha” e do “meu Joãozinho”.

Relembre-se que, até aos anos 60, a determinação científica do sexo ia funcionando, através de parecer médico, obedecido como decreto divino, ainda que algumas vezes pudesse resultar em tragédias pessoais e fraudes encobertas. Falamos da autoridade que teve a ideologia positivista até então, que surgira na civilização ocidental como uma nova religião, pronta a varrer os mitos e superstições da face da Terra (criando novos), e exercendo o seu poder sacerdotal através de uma classe científica e universitária.

Da década de 60 à de 90, após a revolução marxista na cultura da civilização ocidental (onde o feminismo é apenas um capítulo), as ciências sociais ganharam um relevo nunca antes consentido, passando-se a explicar os fenómenos como construções culturais que determinam a identidade sexual de cada um. Recordemos David Reimer, que ameaçou suicidar-se caso não ouvissem a sua história – a história de uma vítima de Dr. John Money e da sua ideologia do “género socialmente construído” – e que, depois de ter descoberto que falsificaram todo o seu historial clínico como se tivesse sido um caso de sucesso, deu um tiro na cabeça. Aqui, o cientismo foi absorvido pela síntese, mais político-cultural que filosófica, entre a pós-modernidade nascente e o marxismo reciclado, a qual prometia a Igualdade e a Liberdade colocando a Realidade em suspenso, como numa dúvida cartesiana.

Parafraseando Simone de Beauvoir: Será que não se nasce mulher? Para ela “nenhum destino biológico, psíquico, económico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam o feminino.”

Por fim, nos anos 90 tivemos notícia das famosas teorias pós-marxistas de Judith Butler. Segundo a autora, a realidade é apenas discurso e o género auto-atribuído predomina sobre as características anátomo-fisiológicas, ou inclusive sobre quaisquer convenções vigentes (sendo estas meras construções heteronormativas engendradas para oprimir as minorias sexuais). O resultado desta postulação intelectual é, sem dúvida, mais aterrador e cruel que o de qualquer das antecedentes. Trata-se de um incentivo à responsabilização exclusiva do próprio sujeito, desde criança, na escolha da sua identidade de género, ignorando totalmente a biologia, a medicina, a psiquiatria. Quem o contesta ou propõe medidas de prudência e precaução legal (por exemplo, obrigatoriedade de autorização médica para mudança de nome, tratamento hormonal ou cirúrgico) é acusado de nada menos que estar a promover o ‘bullying’ e a transfobia. Deste modo, a lei da auto-determinação dá todo o poder ao sujeito, o que, correspondentemente, implica atribuir-lhe toda a culpa em caso de fracasso, arrependimento ou remorso pelas decisões que tomou. Por uma questão de sobrevivência emocional, resta à pobre vítima projectar o fardo dessa culpa novamente no ‘bullying’ e no ‘preconceito social’ (algo contraditório e absurdo, claro está, pois acusa precisamente os únicos que a tentaram proteger, os que lutaram pelas referidas medidas de precaução e diluição do peso da responsabilidade). Contudo, por mais mecanismos de defesa que accione ou ressentimento que projecte, como pode um sujeito escapar à culpa da sua própria auto-determinação? A taxa de tentativas de suicídio entre transgéneros americanos já vai em 40% (9 vezes a taxa da população) e, destes, 92% tentam ainda antes dos 25 anos, uma vez feito o percurso de transição hormonal e/ou cirúrgico.

(https://www.transequality.org/sites/default/files/docs/USTS-Full-Report-FINAL.PDF p.5)

Devia ser óbvio resolver-se um problema tão complexo como este com soluções adequadas, caso a caso, ouvindo diferentes opiniões, procurando diferentes especialistas, escolas científicas variadas, antecipando possíveis constrangimentos sociais, etc. Mas paralelamente à história de cada armadilha ideológica, temos a história dos projectos de poder político, que aproveitam este arsenal revolucionário para se camuflarem e instrumentalizarem os novos proletariados – transexuais e intersexuais.

Do lado do movimento cívico Deixem as Crianças em Paz (que já conta com uma petição com mais de 35 mil assinaturas contra o despacho da Lei da Identidade de Género), considera-se este processo o início de um duro golpe de engenharia social para reestruturar a sociedade, ao jeito das ideologias totalitárias do século passado.

Com efeito, esta lei é uma amostra da inépcia formidável que paira no seio da nossa classe política, promulgadora de ideologias nas costas de um povo adormecido. Parece que quanto menos sabem e menos dados têm para sustentar as suas decisões, mais se mostram seguros e autoritários (fenómeno psicológico apenas compreensível pela protecção adulosa que lhes devota a classe jornalística).

Sabemos que a identidade é um princípio metafísico e filosófico. É algo que escapa totalmente do domínio epistemológico das ciências positivas e sociais, bem como da subjectividade volitiva do ser humano. E se há adultos, até “intelectuais”, que não fazem a mínima ideia disto, já as crianças são a vítima deste novo experimentalismo social, que pretende, retroactivamente, justificar e recolher os frutos desta confusão, continuando a desconstrução da civilização ad aeternum, conforme propõem os paladinos da dialéctica negativa da Escola de Frankfurt. Estes últimos arrogam-se deuses, autoridades acusatórias da própria Realidade, colocando-se acima da sua própria existência e da dos seus semelhantes, em nome da destruição e pela destruição em si mesma.

Em última análise, a autoridade suprema é a da elite bilionária capitalista, que financia os movimentos revolucionários e a propaganda necessária à criação do perfeito cidadão-consumidor, para sempre livre de identidades sexuais, familiares, nacionais e religiosas, ao serviço de um fascismo socialista global e amigo do clima.

Maciel Rodrigues, Arquitecto

28 de Setembro de 2019