Existem quatro fases num processo de normalização da cacotanásia. Na primeira legaliza-se, usualmente através de uma votação parlamentar, como aconteceu recentemente na nossa Assembleia da República, o suicídio medicamente assistido. O principal argumento usado a favor é o do respeito pela liberdade[1], autonomia[2] e vontade[3] de uma pessoa com uma doença[4] terminal e dores[5] insuportáveis, argumento que seria admirável se não fosse falacioso e danoso.
As falácias escondidas no argumento são três. Uma é que, mesmo com as melhores técnicas atualmente ao dispor da medicina paliativa, alguns doentes ainda sofrem horrivelmente. Outra é que a vida de um doente terminal é curta e que os médicos acertam quase sempre no pequeno período de vida que “dão” à pessoa. Outra ainda é que as pessoas são livres e autónomas como se vivessem num vácuo e não numa sociedade—ainda por cima numa sociedade, como a nossa, constitucionalmente a caminho do socialismo.[6]
O aspeto danoso é o invólucro com que a coisa vem embrulhada: o termo “eutanásia” significa “boa morte”, o que claramente constitui publicidade enganosa. Uma morte pedida devido a desespero[7] ou dor ou falta de esperança[8], para já não referir as induzidas por crueldade ou indiferença, nunca pode ser “eutanásia” mas é sempre cacotanásia—uma morte má.
A segunda fase de normalização da cacotanásia é feita através de um processo informal e de aceitação consuetudinária, à porta fechada, nos quartos hospitalares e residências privadas. Nela a aceitação é implícita, nunca explícita. Nesta fase a morte é ministrada, não a pedido do próprio, mas a instâncias de familiares e à discrição do “pessoal de saúde”. A racionalização feita nestes casos, quer por familiares quer por médicos, é que a eliminação da pessoa é feita no seu melhor interesse, mesmo que esta, a patetinha, não concorde.
Isto não é “verdadeira eutanásia”, dizem sempre os proponentes do assassínio medicamente assistido, no início da primeira fase, mas infelizmente o processo de normalização, quando se inicia, nunca fica parado na primeira fase: evolui sempre para a segunda. Exemplos mediáticos, em que a porta se abriu sobre a dita “eutanásia” para revelar o verdadeiro horror que é a cacotanásia, são os da septuagenária holandesa que resistiu contra a injeção letal administrada pelo “médico” enquanto era imobilizada por dois familiares e o de Vincent Lambert (1976—2019) morto com requintes de sadismo num “hospital” a pedido da mulher. Casos raros? Tudo indica que não. A porta, que nesta fase ainda não é de vidro, é que costuma manter-se fechada por conivência dos interessados, que não das vítimas.
A terceira fase da legalização da cacotanásia dá-se quando agentes do estado, sejam médicos, sejam juízes, sejam outros funcionários públicos, passam a ter autoridade para definir o que é o melhor interesse da pessoa, sem ter em conta os desejos da própria e/ou dos seus familiares. Isto começa a ocorrer quando, na provisão de cuidados e saúde, a supremacia estatal se impõe e usurpa os direitos fundamentais dos indivíduos e famílias, e já sucede em vários serviços nacionais de “saúde”. Aconteceu, infamemente, no ano passado no Reino Unido, quando os serviços hospitalares quiseram impor o aborto a uma mulher de origem nigeriana contra a sua vontade expressa por ser “nos seus melhores interesses”, e no mesmo país no ano anterior quando um tribunal passou sentença “nos melhores interesses” de Alfie Evans (2016—2018) de que os seus pais o não poderiam transferir para outro hospital cujos clínicos acreditavam que uma terapia alternativa poderia ter resultados positivos. Nesta fase, quando a cacotanásia é decidida burocraticamente de acordo com processos definidos, a porta começa por ser fosca mas vai-se tornando transparente.
Será aqui de fazer uma pausa e ponderar o conflito de interesses que existe nos sistemas de saúde em que uma entidade, seja pública, seja privada, é ao mesmo tempo o pagador, o prestador e quem decide quais são os melhores interesses dos pacientes. Suponha-se que é uma companhia de seguros privada que paga os tratamentos, e que estes são feitos num hospital gerido por essa mesma seguradora. Será prudente dar-lhe o poder de decidir quais sãos os melhores interesses do doente? Poder para escolher entre pagar um tratamento caro e um protocolo de fim de vida barato?
E se não for sensato dar esse poder a uma companhia de seguros, será ajuizado dá-lo ao estado? Na situação atual, em que os custos com os cuidados de saúde tem disparado nos países da Europa, ao mesmo tempo que em muitos desses países se vive uma apertada contenção orçamental imposta por níveis de dívida pública insustentáveis com uma política monetária normal e pelos limites de sustentabilidade a que um sistema fiscal opressivo já chegou, a pressão do ministério dos centavos para reduzir custos na saúde é enorme. Se, numa situação destas, burocratas estatais puderem reduzir custos através da cacotanásia de doentes especialmente “caros”, deixará de ser necessário recorrer a cativações para tentar equilibrar o orçamento. É isso que se quer?
Ouvem-se duas respostas. Claro que sim, dizem alguns tecnocratas que acreditam na probidade das instituições públicas e na virtude sem nódoa dos seus funcionários. Entre estes está Paul Krugman que responde à pergunta Who decides? dizendo “[i]t’s neither fair nor realistic to expect ordinary citizens to have enough medical expertise to take life-or-death decisions about their own treatment.” (enfase acrescentada) Portanto, conclui o mesmo economista, “[h]ealth reform is a job for the public sector, which already pays most of the bills directly or indirectly, and sooner or later will have to make the key decisions about medical treatment.” (enfase acrescentada)
Claro que não, dizem os vendedores de cacotanásia embrulhada em eutanásia. A “verdadeira eutanásia”, dizem-nos, é opção livre da pessoa, não é decisão do estado, nem do médico, nem sequer dos familiares. Mesmo que seja legalizada, continuam, não tem nada a haver com políticas de saúde, nem sequer com a prevenção do suicídio. Os que assim falam ignoram não só tudo o que os seus programas partidários referem sobre o sistema público de saúde[9], mas também a primeira lei de Tobler, que postula que “tudo está relacionado com tudo o resto, mas o que está próximo está mais relacionado do que está distante” e os exemplos históricos da sua aplicação nas políticas sociais e de saúde pública no século passado na União Soviética, na Alemanha e na China. As políticas sociais introduzidas em 1933, conhecidas como Nationalsozialistische Rassenhygiene, ao desvalorizar a vida de arianos “degenerados”, verdadeiros alemães que não se comportavam como um verdadeiro alemão se devia comportar, e que, em consequência, tinham as suas vidas administrativamente classificadas como Lebensunwertes Leben, que apesar de alemães racialmente “puros” eram diagnosticados como “mentes-fracas”, depressivos, esquizofrénicos, preguiçosos, etc, com certeza não promoveram a dignidade nem o valor da vida das pessoas de “raças inferiores” nem foram totalmente irrelevantes para o que veio a acontecer depois.
É claro que quem hoje defende a normalização da cacotanásia não é nacional-socialista. Pode ser socialista da primeira, segunda ou terceira internacional, poder ser socialista com características portuguesas, pode até ser “liberal” ou libertário, mas não é nacional-socialista. Mas seria uma enorme cegueira supor que são só os nacionais-socialistas que propõem políticas que, ao desvalorizar a vida humana, abrem as portas para que esta, mais tarde, possa vir a ser “eutanasiada” contra a opção do próprio, à força.
Finalmente, a quarta fase na banalização da cacotanásia ocorre quando o estado, ou seus agentes, adquirem um poder repressivo e/ou ideológico que lhe permite pedir à pessoa que se mate, não já com base nos supostos melhores interesses desta, mas agora descaradamente com base nos interesses do estado. O exemplo clássico é o do Japão até 1945, em que os órgãos do estado sugeriam, o que no contexto mais não era que uma imposição, o suicídio aos seus cidadãos invocando causas tão dispares como a defesa nacional, a harmonia social ou a honra grupal. Aquando da invasão americana de Okinawa a palavra de ordem era que ninguém se deixasse apanhar vivo, e os relatos populares do seppuku (que é uma forma de suicídio assistido e apadrinhado) do 47 rōnin de Akō, com todos os seus grandiloquentes louvores á autoimolação, soam a um noticiário norte-coreano contemporâneo a dar conta do altruísmo dos populares que oferecem a sua vida pelo Querido Líder.
Temos assim que o que começa por ser uma política muito liberal, embrulhada no respeito pela liberdade, autonomia e opções pessoais, mas baseada no desrespeito da dignidade inviolável pessoa e no desprezo do valor intrínseco da vida humana, acaba como uma prática muito pouco liberal em que as pessoas se tornam propriedade do estado.[10] E quando as pessoas se podem tornar propriedade, como as vacas, também passam a poder ser mortas e esquadrejadas, como as vacas. A menor ironia não será que, quem hoje em dia se pronuncia sobre o assunto, quer a favor, quer a contra, continue a chamar a isso “eutanásia”—boa morte.
José Miguel Pinto dos Santos
[1] Liberdade: um dos frutos da imaginação; conjunto de meia dúzia de isenções, limitadas pelas leis naturais e pelas teias tecidas pelo destino, da infinidade de controlos societários. “Liberdade ou morte!” gritavam os revolucionários de tempos antigos: nenhum vive hoje.
[2] Autonomia: outro dos frutos da imaginação; submissão à caprichosa ditadura da própria inconstância; tipo de independência de um adulto que ainda não saiu da casa dos pais, semelhante à que é gozada pelas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira relativamente ao orçamento nacional.
[3] Vontade: molécula volátil e instável composta por dois elementos incompatíveis, o desejo e a escolha; de tão desintegrável que é os cientistas ainda não conseguiram determinar a duração da sua meia-vida.
[4] Doença: condição normal ou recorrente num ser vivo; recurso natural, renovável e inesgotável, explorado para proveito de médicos, enfermeiros e farmacêuticos; mecanismo natural para prover os vermes com carne ainda não muito dura.
[5] Dor: experiência sensorial desagradável, localizada no cérebro, associada a dano num tecido corporal e transmitido pelo sistema nervoso ao cérebro; experiência emocional desagradável, localizada no cérebro, associada ao sucesso de um nosso semelhante e transmitido pelas redes sociais ao cérebro; até uma fase evolutiva recente da nossa espécie a bisbilhotice fazia as funções das redes sociais.
[6] O facto é que as pessoas não vivem num vácuo social, mas numa teia de relações sociais. Daqui resulta que o modo como pensam e atuam, as modas que seguem, e o que querem e desejam depende em muito das suas relações interpessoais. O suicídio também está sujeito a modas, desde o surto ocorrido entre as mulheres de Mileto, relatado por Plutarco, até aos que ocorrem nos nossos dias, reportados nos jornais. Mas dificilmente se pode argumentar que, quando se segue uma moda se está a exercer uma vontade que é totalmente livre e autónoma. Aliás, é precisamente quando a liberdade e autonomia são menores que as pessoas “pedem” que as matem.
[7] Desespero: membro de uma ilustre família de virtudes, filho mais novo do casamento entre o entusiamo e a esperança.
[8] Esperança: a mãe do desespero, casada com o entusiasmo; nasceu da união entre o desejo e a expectativa; é uma virtude nacional, como o demonstra o verde da nossa bandeira, associada ao desespero, representado pelo encarnado sanguinolento que se lhe sucede sem perda de continuidade.
[9] Durante a campanha para as últimas eleições legislativas, a Iniciativa dita Liberal apelou, com um outdoor vistoso, ao voto daqueles que não gostam de esperar meses por uma consulta médica no público. Curiosamente não consta que tenha feito apelo ao voto daqueles que não percebem como é que o setor público pode dominar nos serviços de saúde numa sociedade livre e liberal.
[10] Ao contrário do que alguns pseudoliberais dizem, a vida humana tem uma dignidade tal que não só não se deve tornar propriedade do estado, nem da sociedade, mas nem sequer pode ser considerada propriedade do próprio. Isto é, de acordo com o direito natural, uma pessoa não deve ser propriedade de ninguém, nem dela própria: não é passível de posse. Por isso, ao contrário do que acontecia na antiguidade romana e chinesa, ninguém tem atualmente, nem naturalmente, o poder de dispor da sua própria vida como quiser e, por exemplo, vender-se como escravo no mercado. Se ninguém pode vender a sua vida a outrem por maioria de razão deve ser-lhe vedado que peça colaboração na sua destruição.