No seu blog, António Araújo, assessor do Presidente da República e membro da Fundação Francisco Manuel dos Santos, criticou o Padre Gonçalo Portocarrero de Almada, a propósito da sua recente crónica no Observador, “Ser ou não ser cigano, eis a questão!”, que o Notícias Viriato também publicou.
O Notícias Viriato, que já tinha ouvido o P. Gonçalo Portocarrero de Almada quando foi insultado pelo Secretário de Estado da Educação do anterior e actual Governos, entrevistou-o agora, sobre este novo caso.
Notícias Viriato (NV): Leu a crítica que lhe foi feita por António Araújo, sobre uma sua crónica no Observador e no Notícias Viriato?
Padre Gonçalo Portocarrero de Almada (P. GPA) – Quando foi publicada, foi-me lida por um amigo meu, porque eu, no lugar em que me encontrava, não tinha acesso a esse blog. Confesso-lhe que fiquei tão chocado que só a consegui ler vários dias depois.
NV – Conhece António Araújo?
P. GPA – Sim. Há já uns anos convidei-o para falar de um tema da sua especialidade, nuns encontros que eu promovia, e gostei muito da sua exposição. Mais tarde, foi ele que, em nome da Fundação Francisco Manuel dos Santos, muito amavelmente me convidou para apresentar um livro de Ética, o que me deu algum trabalho, mas que fiz com muito gosto. Também desse momento conservo uma grata recordação.
NV – Como explica, então, este ataque pessoal?
P. GPA – Surpreendeu-me muito porque, conhecendo-me pessoalmente, o normal teria sido que me tivesse contactado directamente e pedido que lhe explicasse o que tanto o escandalizou.
NV – António Araújo considerou ofensiva a forma como, nessa sua crónica, se referiu aos deficientes.
P. GPA – Tenho a maior consideração pelas circunstâncias pessoais e familiares do Dr. António Araújo, que desconhecia e que me merecem o maior respeito. Mas mantenho que, o que então escrevi, não foi objectivamente indelicado para as pessoas portadoras de deficiência. Aliás, nesse texto também afirmo que sou portador de duas deficiências – auditiva e visual – embora não graves. O facto de ter sofrido, há uns anos, um AVC, tão grave que me obrigou a três semanas de internamento hospitalar, sensibilizou-me ainda mais para a situação das pessoas deficientes. Por último, para dissipar qualquer dúvida, em nota final dessa crónica, escrevi expressamente: “Com este texto não se pretende (…) desconsiderar (…) os deficientes”.
NV – Mas não se referiu “à privilegiada minoria que, à conta das suas deficiências, tem direito a um lugar de estacionamento na via pública”?!
P. GPA – Sim, claro. Mas é verdade que os deficientes são uma “minoria” e é também verdade que o “direito a um lugar de estacionamento na via pública” é um privilégio exclusivo dessa minoria. Repare que eu não disse que era injusto esse direito – é, certamente, justíssimo! – apenas disse que existe: não fiz um juízo de valor, mas uma constatação de facto. Existe, ponto final. E ainda bem que assim é: faz todo o sentido, porque essas pessoas são merecedoras de todas as medidas que atenuem as suas limitações. Mais ainda: podemos e devemos ser cada vez mais solidários com quem mais precisa, porque é da mais elementar justiça.
NV – Mas não acha que foi infeliz a expressão utilizada nesse seu texto?!
P. GPA – De facto foi, tendo em conta o resultado, mas deixe-me confidenciar-lhe que, embora seja exclusivamente minha a responsabilidade por tudo o que escrevi nessa crónica, antes de a publicar dei-a a ler, por separado, a várias pessoas católicas – um padre, uma professora de português, um engenheiro mecânico, dois médicos, três advogados, etc. – e nenhuma delas, sendo que várias não pertencem à instituição eclesial de que sou membro, me chamou a atenção para essa expressão, que depois veio a causar tanta polémica.
Quando surgiram as primeiras críticas, falei com um invisual, a quem perguntei se tinha achado infeliz essa minha referência, o que ele negou categoricamente. Fiz a mesma pergunta a um médico fisiatra que, como é óbvio, lida todos os dias com pessoas com deficiências físicas e, também ele me disse que eram absolutamente inofensivos os termos em que tinha feito essa referência.
Como sabe, nunca se consegue agradar a todos. Também Jesus Cristo escandalizava, não só os fariseus como também os homens bons do seu tempo. Quem escreve, todas as semanas, num jornal digital de grande circulação, está sujeito a estes mal-entendidos. São ossos do ofício.
NV – Mas tentou entrar em contacto com António Araújo?
P. GPA – Sim, logo que me deram conta, por telefone, do seu comentário. Enviei-lhe um e-mail pessoal – não tenho o seu número de telemóvel – esclarecendo o sentido dessa minha crónica e pedindo-lhe que, se porventura se tinha sentido ofendido, me desculpasse.
NV – Como reagiu?
P. GPA – Não respondeu. Mas, depois de eu ter feito um esclarecimento análogo no Observador, publicou a minha carta no seu blog, sem comentários.
NV – António Araújo chega a sugerir que seja demitido do Observador …
P. GPA – O Observador é um jornal livre e independente. Se estivéssemos no PREC, não tenho dúvidas de que o Observador já teria sido ‘nacionalizado’, e eu, pela certa, ‘saneado’, bem como todos os cronistas que, por serem pessoas íntegras – estou a pensar no José Manuel Fernandes, na Helena Matos, no Rui Ramos, no Alberto Gonçalves, etc. – também não cedem a pressões ou ameaças.
NV – Acha normal um discurso tão ofensivo, por parte de quem é assessor do Presidente da República?
P. GPA – É preciso compreender essas palavras, tendo em conta a dolorosa situação familiar de quem as proferiu e que merecem, como disse já, toda a minha consideração. Mas, como lhe referi quando, há já alguns meses, o Secretário de Estado da Educação, numa rede social, me caluniou – e de que tive conhecimento, precisamente, pelo Notícias Viriato! – considero que este tipo de reações não são as mais adequadas para quem exerce funções oficiais.
É óbvio que as declarações foram emitidas a título pessoal, mas decerto produziram algum desconforto ao Senhor Presidente da República que, quando estive hospitalizado, muito me honrou com a sua visita.
NV – António Araújo também o critica por ter escrito duas crónicas sobre um livro erótico. Que relação tem este livro com a crónica em que se referiu aos deficientes?
P. GPA – Nenhuma.
NV – Mas não lhe parece excessivo dedicar duas crónicas ao mesmo tema?
P. GPA – Não, porque uma versava sobre o livro e a outra sobre a inesperada e surpreendente repercussão, nacional e internacional, dessa minha crónica.
Com efeito, no meu primeiro texto sobre ‘As gémeas marotas’, chamei a atenção para um livro pornográfico que aparentava ser um livro infantil e que, por isso, podia induzir em erro os mais jovens. O assunto era grave porque, numa só livraria de Lisboa, já se tinham vendido mais de quinhentos exemplares! Uma coisa infame, que me senti na obrigação moral de denunciar, causando o escândalo de quem aprecia esse tipo de ‘literatura’, ou é a favor da pedofilia e do abuso de menores.
Essa crónica teve grande repercussão nacional e internacional, graças à intervenção de vários professores da Universidade de Coimbra, que se interessaram pelo tema, e da editora holandesa, representante do autor plagiado. Veio-se então saber que a edição era pirata. Ou seja, para além de imoral, era também ilegal. Foi por se tratar de uma edição fraudulenta que os livros foram apreendidos pelas autoridades judiciais.
Assim sendo, achei que era meu dever informar os leitores do Observador da extraordinária projeção dessa denúncia. Tive que o fazer eu, porque as notícias do Observador sobre esta apreensão não a relacionaram com a minha primeira crónica sobre este tema, ao contrário do que reconheceram todos os outros media.
NV – Quer dizer que o Observador censurou um cronista do Observador?!
P. GPA – Quero crer que, como a minha chamada de atenção tinha sido feita no próprio Observador, o jornal, quando referiu o desenvolvimento do caso, em posteriores notícias, não achou necessário voltar a mencionar essa minha crónica, que era até relativamente recente. É razoável que se evitem as notícias redundantes.
NV – António Araújo termina o seu texto cuspindo-lhe na cara…
P. GPA – Como deve calcular, muita gente ficou escandalizada com esse insulto: não se espera uma expressão dessas de um intelectual tão conhecido e respeitado, também por mim. Como lhe disse já, fiquei muito chocado pela violência dessas palavras, que lhe perdoei de imediato e que me permitiram fazer-me cargo do seu sofrimento, pelo qual tenho, insisto, o maior respeito e consideração.
Sempre fui e sou muito condescendente com a diversidade de opiniões, mas alérgico à agressividade. Em todos os casos, é legítima e até salutar a discordância em relação às opiniões, mas sempre no maior respeito pelas pessoas.
NV – Regressando à sua polémica crónica, como explica as reações que provocou?
P. GPA – Seria injusto se não referisse que foram muito mais as reações positivas do que as negativas. Se vir o número de pessoas que partilharam – mais de mil e quinhentas, só no Observador! – e comentaram positivamente esta crónica, precisamente porque a não consideraram desrespeitosa para ninguém, muito menos para as pessoas com deficiências, verá que o número dos que a criticaram é uma minoria a que, por isso mesmo, não se deve dar excessiva importância, sobretudo depois de eu ter tido a delicadeza de esclarecer o que tinha pretendido dizer, com uma nova crónica (Ser ou não ser deficiente, eis a questão!).
NV – Incomodam-no estas polémicas?
P. GPA – A polémica não me incomoda, mas fico sempre muito triste quando vejo que alguém se sentiu ofendido, como foi o caso, com o que eu disse ou escrevi, porque essa não é, nunca, a minha intenção.
Chesterton dizia que, quando todas as pessoas concordavam com ele, pensava logo que se tinha enganado! Não procuro a unanimidade, nem a polémica, mas também não tenho medo de dizer e escrever o que penso, mesmo quando não é politicamente correcto.
Dói-me muito o sofrimento físico e moral de tantas pessoas, com quem procuro ser solidário e por quem rezo. Diariamente peço a Deus, nas minhas orações, que me perdoe e que triunfe, também no difícil mundo das comunicações humanas, tão sujeito a paixões e conflitos, o amor que “não se alegra com a injustiça, mas com a verdade” (1Cor 13, 6). Ou seja, o amor que o próprio Deus é (1Jo 4, 8.16).
02 de Dezembro de 2019