Oportunistas de carreira, burocratas dos velhos partidos, cães-de-guarda do tudo-como-está que pôs a Europa no caminho da implosão e o Ocidente à beira da morte – todos celebram, pois o vento parece ter mudado de direcção. Trump desapareceu de cena, ou pelo menos do poder, substituído por uma velharia sorridente. Na Alemanha, a AfD, caída no pântano de um extremismo infantil, não cresce, mesmo enquanto o equilíbrio político se transforma. Salvini vai definhando: um discurso absurdo, desmazelado, brutal na forma, cada vez mais sistémico e ortodoxo na substância, levou-o dos 40% a que chegou a tocar em sondagens a uns desapontantes 20%. Le Pen bate recordes de apoio nos estudos de opinião, mas quem diz apoiá-la – a juventude francesa – não está para maçar-se: quando chamada a votar, prefere a abstenção. A RN ganha nas previsões; perde em eleições. Em Inglaterra, sai Corbyn, entra a esquerda liberal-cosmopolita de Starmer. Em Espanha, o PP parece ter recuperado fulgor após o triunfo de Ayuso em Madrid, e o Podemos apodrece. Do nosso lado da raia, Ventura vive uma euforia permanente, celebra cada sondagem como prenúncio de um furacão – mas não há furacão nenhum, e AV está congelado entre os 6 e os 10% há um ano. Neste 1848 ao contrário, a reacção já se sente com força para o contra-ataque: a perseguição à Hungria ou à Polónia piora a cada mês, e mostra que quem se via ontem sob cerco já encontra, pelo menos, espaço para respirar.

Nada disto tem que ver com o desaparecimento dos motivos estruturais da ascensão dos partidos da direita – mas também da esquerda – populista. A decadência do mundo ocidental – ou seja, do espaço pan-europeu – continua acelerada, e em todas as esferas. A concentração abusiva de riqueza nas mãos de pequena oligarquia internacional não sofreu qualquer abalo – antes beneficiou grandemente com o Covid. A coesão social dos principais Estados do Ocidente permanece sob assalto, posta em chama pela esquerda universitária das minorias e das reparações, sim, mas também por uma maré migratória que nem acabou, nem vai acabar. A ansiedade geral que se vivia, se algo, piorou com a instauração, em resposta à crise pandémica, de regimes de vigilância e repressão como a Europa não conhecia já desde o fim dos totalitarismos. A tensão entre potências, e a necessidade de produzir uma unidade interna que permita a mobilização de recursos para o esforço geral que se prepara contra a China, significa que este liberalismo autoritário e policial veio para ficar.

Apesar de não faltarem razões pare o sucesso daqueles que se manifestam como oposição a este estado de coisas, o agravamento da situação não tem estimulado o seu progresso – antes se tem observado a sua desaceleração. Porquê? A culpa não parece ser da conjuntura: o choque com a pandemia já tem quase ano e meio; passou o tempo para o “rally round the flag”. Se procuram um culpado para o seu falhanço, os populismos não têm de fazer mais que olhar-se ao espelho. À esquerda, sabotam-se ao confundir o populismo na economia com o discurso abstruso e repelente das minorias e das raças. Quiseram Corbyn e Iglesias o voto do trabalho, culpando a globalização pelas suas penas. Bem aí, não perceberam que o homem da fábrica ou da pequena empresa não vota em quem o considera culpado, pelo crime de ter nascido caucasiano, pelos males do mundo. Um extremismo delirante acantonou a esquerda, fazendo-a cortar com a sua base tradicional de apoio – gente comum, frequentemente “conservadora”, que não quer revolução cultural, mas justiça social.

A direita “populista” foi pelo mesmo caminho, e com o mesmo efeito. Olhou para Trump, viu sucesso e quis imitá-lo sem o ter percebido. Não quis ver que Trump perdeu, em votos, ambas as eleições a que se propôs, e que ficou a dever a vitória à elaborada matemática eleitoral do sistema americano. Não quis ver que Trump só venceu por ter tomado de assalto um partido cuja base mínima de apoio ronda a metade da população. Não quis ver que aquele discurso desgovernado e brutal só fazia sentido em regime de bipartidismo, marcado por um grau de fidelidade eleitoral que nenhum partido europeu da direita populista está sequer próximo de ter. Nada percebendo, imitaram o pior. Uma a uma, a pouco e pouco, purgaram as ideias do seu programa como quem limpa uma ferida. Salvini e Le Pen livraram-se primeiro da oposição ao Euro, depois do próprio eurocepticismo. Em tudo recuaram; preferiram nada ter de novo ou diferente para dizer. Optaram pelo berro oco, por um nada brutal, por correr atrás da notícia. Quando acordaram, estavam iguais ao centro-direita “tradicional”. Eram a mesma coisa, mas mal falante, orgulhosa da sua estupidez e em estilo cavernoso. E começaram a morrer. É fácil perceber a decadência deste populismo conscientemente, orgulhosamente, determinadamente vazio.

No fundo, ele é produto de elites que dirigem àqueles a quem pedem o voto um desprezo ardente, e vivem convencidas de que, para a plebe, quanto pior, melhor. Mas estão enganados: nas profundezas do homem comum vive um imbatível bom-senso, que o faz fugir de aventuras absurdas por muito que deteste “o sistema”. Ouve a linguagem repetida e pobre de um Salvini, vê-o abrir mão de tudo o que devia ser-lhe inegociável, e percebe que ali está um oportunista não muito melhor – talvez até pior, porque amador – que os do costume. O populismo da irracionalidade e da raiva pura está morto: não convenceu, nem podia convencer. Mas algo de mais interessante lhe sucederá, caminhando pela brecha que ele abriu: é uma direita de ideias e de saber-fazer que já governa no Reino Unido, com Johnson, e vai medrando nos Estados Unidos, com DeSantis, ou em Itália, com Meloni. É também a que chegará a França, se Le Pen se revelar incapaz de fazer do seu partido mais que um sindicato de gente zangada. E é o que chegará a Portugal, de uma ou de outra maneira.

Rafael Pinto Borges