Ficamos a saber, há dias, da recusa do Banco de Inglaterra em fazer a emissão especial de uma moeda comemorativa dos cinquenta anos da morte de Enid Blyton. A justificação remetia para o facto de a escritora ter cometido alguns dos maiores pecados dos nossos dias, o inevitável “racismo”, a tenebrosa “xenofobia” e a mais recente “homofobia”.
Escrevi “pecado” mas penitencio-me desde já. No nosso mundo pós-moderno e secularizado não se pode usar tal conceito. Fiquemo-nos, pois, pelo mais prosaico “crime”, na medida em que parece ter sido o que a autora cometeu em diversas das suas obras. Já terá faltado mais para Os Cinco serem considerados um bando de arruaceiros skinheads.
Esta situação não é nova e já afectou outros escritores. Recordemos, por exemplo, Mark Twain, expurgado de bibliotecas públicas pelo facto de, em Huckleberry Finn, podermos encontrar a expressão “preto”, algo impensável aos olhos assépticos dos censores modernos. O curioso é, de resto, a estreiteza de vistas dos mesmos, que não perdoam o mínimo “deslize” a ninguém, nem sequer a um autor como Twain que foi, por exemplo, um dos mais admiráveis divulgadores das atrocidades cometidas pelos funcionários de Leopoldo II no seu domínio pessoal do Congo Belga.
Este reescrever da História, da Literatura, das Artes, nem sequer é novo. Na sua presente forma remonta a algumas décadas atrás. Assim, já no ano de 1991 o neoconservador Irving Kristol escrevia sobre esse problema e as suas consequências devastadoras no ensino e naqueles que, supostamente, seriam os seus beneficiários.
Deste modo podíamos ler em Kristol que “dentro do sistema educativo americano tem vindo a vulgarizar-se cada vez mais ensinar aos jovens negros que aquilo a que chamamos ‘Civilização Ocidental’ foi algo inventado por egípcios negros e de que os gregos traiçoeiramente se apropriaram, ou que a África negra era um continente pacífico e tecnologicamente avançado antes de ter sido devastado pelos brancos” (Kristol, Irving, Neoconservadorismo, Quetzal, 2003, p.69).
No caso em apreço Kristol faz menção a uma “teoria” que conseguia a atenção de alguns autores á data, a chamada teoria da Atenas Negra, segundo a qual a filosofia grega não seria mais do que uma pilhagem da sabedoria africana. Note-se que isto nem sequer era muito original. Já anteriormente se tinham acusado os gregos de não serem mais do que receptores de sabedorias orientais e adiantava-se como fundamento de tal as viagens feitas por alguns filósofos a regiões circunvizinhas da Grécia (Platão e a sua visita ao Egipto, por exemplo).
Kristol sabia do que falava e conhecia bem os mecanismos mentais destes novos censores. Na sua juventude fora, como tantos outros, trotskista, e sabia reconhecer velhas práticas, velhos hábitos. A manipulação da História é um campo privilegiado de acção para estes vigilantes. Que a verdade seja colocada em segundo plano não é problema para eles. O que conta é a realização dos objectivos políticos. E aqueles que forem contra os mesmos arriscam as consequências. Sobre estas, é ainda Kristol que nos diz, no texto citado, que “um jornalista telefonou a cinco eminentes professores de egiptologia, perguntando o que achavam da alegada origem da Civilização Ocidental se alicerçar nos egípcios negros. Todos responderam que se tratava de um disparate. E, ao mesmo tempo, todos pediram que o seu nome não fosse associado a esta tomada de posição arriscada, porque era ‘politicamente incorrecta’”.
Note-se que encontramos aqui uma falsificação datada, digamos assim. No início da década de noventa ainda se achava de bom tom atribuir qualidades à Civilização Ocidental por parte daqueles que se encontravam empenhados em destruí-la.
Mas esta é apenas uma das contradições em que se enreda o pensamento politicamente correcto. Voltando ao caso de Enid Blyton não deixa de ser revelador encontrarmos acusações perfeitamente datadas e que não faziam qualquer sentido à data em que as obras foram produzidas. Os adeptos do politicamente correcto esquecem aqui, convenientemente, as lições de alguns dos seus mestres, desde logo o guru Michel Foucault. É conhecida a asserção deste segundo a qual o homem “é uma invenção recente”. Na mesma linha de pensamento, e levando-a ainda mais longe, Bruno Latour haveria de escrever que Tutankhamon não podia ter morrido de tuberculose porque, á data, o conceito de tuberculose não existia dado o bacilo de Koch ter sido descoberto apenas no século XIX.
Portanto, se o homem só surge a partir da Idade Moderna e se a tuberculose não mata ninguém antes do século XIX, como é possível encontrarmos “racismo, xenofobia e homofobia” em Enid Blyton ou em escritores, filósofos, pensadores que viviam num universo conceptual alheio a tais ideias? Os malabaristas da censura e da doutrina saberão responder a isto.
Não deixemos, pois, que a realidade estrague uma ideologia. Este parece ser o lema dos novos construtores da verdade (os quais, por acaso, defendem frequentemente o relativismo epistemológico e moral). Construtores que derivam de uma longa linhagem, a daqueles que desde há milénios encaram o mundo como um lugar a transformar, edificando ao mesmo tempo o “homem novo”.
Que a edificação desse projecto tenha falhado sistematicamente, deixando à sua passagem apenas destruição e infelicidade não parece ser algo que demova os novos engenheiros de almas.
16 de Agosto de 2019
João Vaz
Excelente artigo. Era bom que o NV se conseguisse focar-se mais em artigos com este nível de qualidade e de discurso, embora eu compreenda perfeitamente que não seja fácil consegui-los.