Os chavões da moda são “tudo mudou”, “nada vai voltar a ser como dantes” e “o normal não volta”. A sua origem está na tendência antiga e constante, provavelmente imutável, de cada geração crer que vive no fulcro da história, o momento messiânico ou apocalíptico, em que a humanidade acelera, sai da órbita de sempre e é lançada por espaços intergalácticos desconhecidos. Há semanas atrás eram as transformações digitais, as nanotecnologias, as impressões 3D, os novos sistemas de pagamentos e as biotecnologias que iam fazer mudar tudo e alterar irreversivelmente o modo como vivíamos. Agora é o covid.
Convirá notar que, mesmo que fosse verdade, “tudo mudou” é um chavão oco desprovido de sentido e não é argumento válido para nada: não informa sobre como tudo mudou, não aponta uma direção a seguir nem nos dá um mapa para os orientar as nossas ações. Não sendo verdade, isto é, não sendo uma descrição correta daquilo que se está a passar, o uso de “tudo mudou” indicia ou um sistema mental infantil, a crença que é necessário fugir do presente porque vem aí um papão imaginário, ou um sistema cognitivo voodoo, a crença de que a elocução do feiticeiro vai alterar a realidade. Neste contexto valerá a pena recordar algumas coisas que não mudaram, o que poderá nos ajudar a manter um sentido de direção.
Entre aquilo que não mudou estão as crises. A história da humanidade é uma história de crises e da sua superação. Sempre houve crises, até em Portugal. Desde o 25 de Abril tivemos as crises do 28 de Setembro, do 11 de Março e do 25 de Novembro, as crises da descolonização e dos retornados, várias crises orçamentais, em 1977, 1983 e 2011, a epidemia da cólera de 1975 e a da peste dos governos de José Sócrates, entre outras. A do covid é apenas mais uma, e muito provavelmente nem sequer será mencionada nos livros de história dos nossos netos. Tudo como dantes por aqui.
Outra coisa que não mudou foi a natureza humana. As pessoas continuam, e vão continuar, a ser atraídas pelo bem, pela verdade e pelo belo mas com a propensão para fazer o mal, para dizer e aceitar a mentira, e para aceitar o sórdido no material e no moral. As virtudes vão continuar a ser praticadas juntamente com os vícios. As crises têm, no entanto, o condão de tornar quer as virtudes, quer os vícios mais visíveis. Não só os grandes atos de heroísmo e a clara visão estratégica, mas também as maiores perfídias e palermices são praticadas durante as grandes crises. Também os bebés vão continuar a nascer, as crianças a ser educadas e ensinadas, os adolescentes a ser rebeldes e tontos, as pessoas a trabalhar, a adoecer e a morrer. Tudo como dantes por aqui.
Também as leis da economia vão continuar inalteradas. Quando os preços subirem em mercados concorrenciais a oferta vai continuar a subir e a procura continuar a diminuir. Os monopolistas vão continuar a restringir a oferta para maximizar os seus lucros, e o aumento dos rendimentos vai continuar a ser determinado pelos acréscimos de produtividade, sejam estes originados por inovação tecnológica ou progressos organizacionais. Tudo como dantes por aqui.
De igual modo também as leis da física e da química vão manter-se inalteradas, tal como inalterado se manterão os ensinamentos de Cristo e os dogmas do Cristianismo. Talvez mais surpreendentemente, também os princípios básicos do direito e da ética se manterão sem mudança, embora a inconstância legislativa nacional (outra coisa que não mudará) e as falácias dos literati e “elites” (idem) possam continuar a dar a ilusão de “progresso”.
Outros exemplos de coisas que não mudaram com a pandemia poderiam ser dados, mas estes deverão ser suficientes para infirmar a preposição de que “tudo mudou”. Alguma coisa terá mudado? Sim, alguns pormenores e detalhes mudarão na nossa vida, como sempre aconteceu e continuará a acontecer todos os dias pelos séculos dos séculos. A utilização de chavões ocos como “tudo mudou” é indício suficiente para se perceber que nada de fundamental terá mudado. Aliás, fazem-se votos de que nem sequer miudezas como os bons hábitos de higiene pessoal do leitor tenham mudado durante esta pandemia.
José Miguel Pinto dos Santos
U avtor não segve a graphya do nouo AcoRdo Ørtvgráphyco. Nem a do antygo. Escreue como qver & lhe apetece.
Excelente artigo!