Nação dócil e crédula que somos, dada à novela, à simplificação e à infantilização, persistimos quase cinquenta anos depois dos acontecimentos de 1974 na repetição acrítica de mitos, presos a uma obsessão auto-vitimizadora e aterrorizados – aterrorizados num temor que é incompatível com a nossa natureza de povo livre – perante qualquer proposta racional de análise e re-interpretação do 25 de Abril e das suas consequências de longo prazo. Estes apontamentos pretendem ser exactamente o exercício de crítica serena de que o país continua a precisar, tremenda e urgentemente, sob pena de jamais vir a exorcizar os fantasmas que o prendem a um passado mitificado e lhe vedam a estrada do futuro.

1. Sem 25 de Abril, a democracia teria vindo também – e teria sido melhor.

Recordar que a democracia liberal não era a preocupação central dos arquitectos da revolução – uns, tropa zangada por tricas de corporação; os outros, logo a seguir, importadores falhados do modelo soviético de “democracia” – só é necessário num país de memória tão falha quanto o nosso. Mais relevante perceber, contudo, é que a democracia não veio como consequência do 25. Veio como inevitabilidade histórica. Terminados os regimes grego, e sobretudo o espanhol, com o fim da guerra fria à espreita (a apenas quinze anos) e a universalização da democracia liberal, a questão não era saber se ela chegaria a Portugal, mas como chegaria, e que preço – em instabilidade política, em incerteza e nas consequências dessa incerteza e dessa instabilidade – teria o país de pagar pela sua vinda, por si mesma processo natural como desejável.

Como teria sido uma transição não-revolucionária para a democracia ? Provavelmente, teria seguido de perto o modelo espanhol. Os partidos políticos e as liberdades fundamentais teriam vindo após um processo de reforma constitucional que poderia ou não ter mantido o texto-base de 1933; a direita, monopolizada no regime com a União Nacional/Acção Nacional Popular, ter-se-ia talvez reorganizado num novo grande partido e mantido, com as actualizações necessárias e a adaptação ao jogo democrático, os aspectos essenciais da doutrina salazariana: soberania nacional, intenso patriotismo, o carácter pluricontinental e multirracial do Estado e uma ou outra forma de economia social de mercado. Para uma direita habituada depois ao espartilho de figuras e ideias menores  – reconheçamo-lo, a social-democracia, a fascinação babosa do cavaquismo pela Europa e o protagonismo de actores secundaríssimos como um Sá Carneiro ou um Amaro da Costa não foram outra coisa – o corte radical com a sua tradição e quase todas as suas referências culturais foi um cataclismo que pegou o regime de Abril a uma alternância desequilibrada e gerida sempre pelas esquerdas. Essa realidade faria da nossa democracia uma de vencedores e vencidos em que as direitas, não obstante todas as tentativas de compromisso e auto-negação, jamais foram mais que um intruso tolerado, com condescendência ou suspeição, pelas esquerdas dominantes. Esse desequilíbrio, que as esquerdas fizeram lei de ferro policiando, perseguindo, desclassificando e envergonhando as direitas, é na verdade uma fraqueza do regime e faz da III República uma democracia incompleta.

2. Sem 25 de Abril, teríamos tido democracia sem colapso nacional.

Entre outros defeitos, a religião de Abril tem o de um racismo sublimado e escondido, mas real e necessário à sua coerência interna. O tom festivo (Abril como marcha luminosa da democracia) esquece aspecto relevante: é que, dos quase vinte e cinco milhões de homens e mulheres que eram cidadãos portugueses a 25 de Abril de 1974, a democracia só chegaria a uma minoria – aos portugueses de cá. Para os outros – todos eram cidadãos portugueses de pleno direito desde que, em 1961, Adriano Moreira abolira o Estatuto do Indígena – o 25 de Abril foi antecâmara de um pesadelo que não terminaria. Não lhes chegariam as liberdades democráticas nem – como no nosso caso – a almofada amortecedora dos dinheiros europeus e do mercado comum; para 15 milhões de portugueses ultramarinos, Abril foi o início de cinquenta anos de despotismos que nenhum homem de bom senso poderia querer comparar ao de Salazar e Caetano, de invasão estrangeira (Timor), guerra civil (Angola e Moçambique), fim efectivo do Estado (Guiné), miséria simples (São Tomé e Príncipe) ou pobreza e emigração (Cabo Verde). O colapso do Estado português teve, ainda, consequências arrasadoras fora das suas fronteiras de 1974 – consequências que insistimos em ignorar. Sem ele teria sido impensável, por exemplo, a subida de Mugabe ao poder na Rodésia-Zimbabué e a transformação daquele país – outrora o celeiro de África – em cenário de uma das mais dramáticas catástrofes humanitárias do planeta. O modo como os elogiadores de Abril recusam radicalmente qualquer responsabilidade pelo preço humano daqueles acontecimentos é uma infâmia moral e uma afronta à inteligência. Ou, pelo menos, a toda a arrumação lógica dos eventos de 74 e 75.

Todavia, não tinha de ter sido assim. Cessadas como praticamente estavam as operações de combate em Angola e em Moçambique, o argumento de que seria nos pântanos da Guiné, às mãos de uns quantos milhares de maltrapilhos precariamente armados, que ser perderiam a guerra e o Império só pode merecer a expressão cínica, hesitante entre a risada e o desprezo, de quem o ouve. O Portugal de 1974 era um Estado de vinte e cinco milhões de homens e uma economia cuja dimensão quintuplicara desde 1960. Internacionalmente, encontrava-se por certo na sua posição de maior força desde que, em 1822, circunstâncias semelhantes – um levantamento militar seguido de caos político cujo resultado foi a implosão institucional e territorial do Estado – lhe levaram o Brasil e o atiraram para a periferia do poder global.

Como poderia o problema ultramarino ter sido resolvido sem, como acabou por acontecer, conduzir ao súbito desmembramento do Estado ? A uma realidade negra – milhões de refugiados, milhões de mortos em guerras civis, países inteiros reduzidos às formas mais completas e indizíveis de penúria – poderia uma evolução ordeira e pactada ter oferecido alternativa muito mais risonha. Quatro anos apenas depois do colapso imperial, as eleições de Thatcher no Reino Unido (1979) e de Reagan nos EUA (1980) abririam o período de mais afincada determinação anti-comunista no Ocidente e, com ela, a certeza de uma reforçada solidariedade europeia e norte-americana nas campanhas que Portugal travava em solo africano. Se a guerra se tivesse mantido pela década de 80, seria, mais ainda do que era já em 74, como drôle de guerre – uma pequena guerra, mais operação de manutenção de paz que conflito aberto, e fardo feito cada vez mais leve pelo apoio do mundo democrático e os meios de resposta acrescidos (técnicos, financeiros, industriais e, em última análise, militares) que o rápido desenvolvimento das economias da Metrópole e do Ultramar traria. Portugal era mais forte em 1965 que o fora em 1960; era-o mais em 1970 que o fora em 65. E sê-lo-ia mais ainda, a atentar na realidade dos indicadores relevantes (PIB, dimensão e diversidade da base industrial, crescimento do PIB, volume do orçamento do Estado), em 1985 ou em 1990.

Mais haverá a dizer sobre o assunto. Chegando como viessem a chegar as negociações directas com os representantes dos movimentos de guerrilha que nos dirigiam hostilidades – e sabemos hoje que Caetano não era a essa possibilidade avesso – é coisa certa que Portugal partiria para elas em posição de força. Tendo havido democratização em unidade – no fundo, a solução que tentaria Spínola após Abril de 74 em condições que já não a possibilitariam – perguntamo-nos, ainda, que legitimidade poderiam ter reclamado as guerrilhas quando num parlamento de Lisboa, eleito democraticamente, se reunissem deputados e partidos africanos comprometidos, se não com a preservação do carácter unitário do Estado, pelo menos com uma ou outra forma de continuidade portuguesa.

Essa continuidade teria, mais cedo ou mais tarde, resultado numa transferência (isto é, numa localização, ou descentralização) de poderes que teriam desagradado aos que, como eu, são cépticos dessas soluções. Talvez tivéssemos acabado com uma federação portuguesa, como tardiamente tentaria Spínola fazer – e, por fim, em algo que tendesse para a confederação, com Angola e Moçambique a assumir responsabilidades e importância compatíveis com a sua força, extensão e poderio. Com o tempo, desenvolvendo-se e fortalecendo-se os dois vértices africanos desse triângulo português, Lisboa teria inevitavelmente de escolher entre reconhecer-lhes papel mais e mais determinante na condução dos negócios comuns e aceitação da sua autonomia crescente. A relação entre os três, ainda vertical em 1974, transformar-se-ia naturalmente: a realidade do equilíbrio de forças e de potencial económico, demográfico e político determinaria uma associação cada vez mais horizontal – é dizer, estruturalmente mais democrática – entre os três pólos confederais. Lisboa perderia a posição de cabeça indiscutível do espaço português. Uma confederação lusíada teria sido, mais cedo ou mais tarde, gerida de três centros de influência: Lisboa, Luanda e Lourenço Marques.

É talvez verdade que, dividida em três partes, semelhante confederação não teria nem a força, nem a eficácia, nem a capacidade de um Estado unitário para fazer-se escutar internacionalmente. E, porém, quem pode, se de bom senso, duvidar que esse caminho – caminho que era real e estava próximo – teria, malgrado as suas insuficiências e as suas falhas, sido incomparavelmente melhor que o rumo que os acontecimentos acabaram por tomar? E como ignorar as oportunidades que poderiam ter-nos esperado nesse outro mundo que Portugal perdeu? E se, mantida a unidade portuguesa pela federação ou a confederação, se tivesse adensado o interesse manifestado por Lisboa e Brasília antes de 1974 no aprofundamento da Comunidade Luso-Brasileira, criada em 1953? Talvez um grande bloco lusíada, liderado de Portugal, Brasil, Angola e Moçambique, se destacasse hoje como pólo irradiador de força em todo o hemisfério sul. Que importância teria semelhante bloco, através do Brasil, na América latina? Que influência – económica, política, cultural, linguística – projectaria ele, por Angola e Moçambique, sobre o coração do continente africano se na década de 70 não tivesse havido nem desagregação política do espaço português, nem implosão económica, nem o início de duradouras contendas civis? Que posição na hierarquia europeia ocuparia um Portugal que exercesse influência palpável sobre um mundo português coeso, ainda que descentralizado, independentemente da relação que ele viesse a ter com o Brasil? Entre tantas possibilidades e tantas perguntas, ficamos com a certeza de que, de todos os caminhos disponíveis, Portugal não ficou naqueles anos determinantes longe de ter escolhido o pior.

3. 74 e 75 roubaram-nos a última oportunidade que tivemos de ser um grande país.

A 26 de Abril de 1974, a nova Junta de Salvação Nacional, encabeçada por um Spínola patriota mas politicamente inepto, prometeu aos portugueses “garantir a sobrevivência da nação como pátria soberana no seu todo pluricontinental”. O compromisso com a unidade do Estado foi o mais importante que os líderes do novo regime firmaram após o seu triunfo. Foi, também, o que mais clamorosamente falharam.

As décadas seguintes provariam a sensatez dos medos de Salazar, Franco Nogueira ou Norton de Matos quanto às perspectivas de um Portugal confinado à Europa: sem “garantir a sobrevivência da pátria no seu todo pluricontinental”, dificilmente se poderia garantir a sua sobrevivência como “pátria soberana”. Subitamente devolvido às suas fronteiras do XIV, periférico na Europa, pobre de recursos, de solo improdutivo e exígua base demográfica, ao Portugal pós-império restou ser o que é: um pequeno Estado orgulhoso demais para ser província, mas demasiado pequeno para poder possuir soberania autêntica. Sem grandes empresas ou maneira de acumular capital, a sua posição é, no grande esquema da economia europeia, de inteira subalternidade. Portugal é uma colónia no pleno significado do conceito: não mais podendo fazer,  exporta capital (é um mercado para outros mais fortes) e gente (manda para fora a mão-de-obra que cá não consegue manter). Sem know-how técnico ou dinheiro para investir (o que tinha, fruto do nacionalismo económico do regime anterior, logo dinamitou com as estatizações pós-revolução), a Portugal fica o vinho, o azeite, o pernil de porco, o sol-e-praia, o jovem diplomado a servir gins tónicos a turistas e a tragédia de uma geração inteira obrigada ao exílio económico na Europa próspera.

O regime é, quanto a isso, tanto vítima da sua mediocridade como da realidade que construiu e de que se orgulha: demasiado fraco para a grande aventura que é a independência, o que lhe fica é a posição inglória de middleman entre a Europa rica e uma população quase miserável. Mas a dependência é sempre fraqueza: quando sumir a esmola franco-alemã (a UE), também o regime acabará. Ele sabe-o, o que explica o seu servilismo aparatoso e por vezes ridículo. Até lá, na sua pequenez indisfarçável, pouco pode fazer que não seja o que tem feito desde 86: pedir mais, sempre mais, e piar fino. A esse imperativo de sobrevivência passou o regime a sujeitar cada grão de amor próprio do país, todo o projecto, decisão ou vontade nacional, por muito que democraticamente determinada, cada peça da maquinaria estatal e cada detalhe da nossa vida pública, da política externa à financeira, da das pescas à da saúde.

4. Crescer e olhar para a frente.

Como a maioria dos sistemas de crença, Abril é devorado do interior pelas suas contradições. De todas, esta é a mais flagrante: acolhendo para festejá-lo, tomá-lo, usá-lo e instrumentizá-lo os mais coerentes inimigos da liberdade de pensamento (sejamos francos, a extrema-esquerda que o reclama como seu não é outra coisa), reserva para si a dignidade de pensamento livre e acusa os que o criticam de se oporem àquele; mascarado com a capa das liberdades, admite-as em tudo excepto sobre si mesmo. Abril é ainda, cinquenta anos depois, o grande tabu: propor-lhe análise mais elaborada que a repetição acéfala do mantra permitido e imposto é pedir, e receber, o escárnio, a censura e a morte civil. Quebremos, pois, a parede do medo dizendo o que todos sabem ser verdade. Primeira evidência: para lá de alguns lunáticos política e socialmente insignificantes, o que critica quem tem reservas sobre Abril não é a democracia ou as liberdades que a revolução acabaria – malgrado a vontade e a acção de boa parte dos seus líderes – por trazer. Não é, também, o fim de um regime que, independentemente dos seus méritos e das suas falhas, se encontrava em 1974 tão esgotado que ninguém se dispôs a defendê-lo. As críticas a apresentar sobre Abril, sejam sobre a sua deriva autoritária (ostensiva no primeiro ano e meio, silenciosa mas constante depois), a tentativa real de construção de um regime liberticida, o arrasamento económico ou, em particular, o tema central da unidade nacional perdida são razoáveis e merecem a ser objecto de debate intenso e adulto entre os portugueses.

Segunda constatação fundamental. Desaparecidos, ou quase, os líderes de Abril, a memória da revolução é hoje, mais que qualquer outra coisa, o que seria o 28 de Maio em 1960: um eco distante e um ritual sem mística, repetido mais como rotina que por convicção. Isso, para o português comum. Para o regime, é uma missa auto-celebratória e uma ópera bufa em que ele ocupa tanto o palco como a plateia. É a liturgia que justifica o seu poder e em que cada vez mais só ele toma parte, e pela qual só ele se interessa. O apelo enfático aos “valores de Abril”, como o apelo ao “espírito do 28 de Maio” nos últimos anos de decadência do regime salazarista, é anúncio da decrepitude do actual. A grande roda da História não pára nem dá trégua. É cruel, e é cínica também: é Abril que se converteu na realidade cinzenta, velha e gasta, guardada do alto pela sua própria brigada do reumático, com que acabou em 1974.

Se não está morta, a ortodoxia autoritária, rigorista e persecutória sobre os acontecimentos e os efeitos de 74-76 está, pelo menos, em imparável decadência. E está frágil. Com a Europa – caixa multibanco, sustentáculo e mito do regime – em putrefacção, adivinha-se para breve a abertura de um novo capítulo na História do país. Não sabemos o que ele será ou quem o iniciará, mas sabemos que os grandes mitos que fundam a III República – ideologicamente, a celebração de um país divorciado do seu passado; economicamente, um satélite; geopoliticamente, um protectorado franco-alemão – estão em crise. Avançar para lá dela e encontrar uma nova síntese, uma nova ideia de país e um novo rumo não prescindirão das perguntas essenciais: quais foram as consequências de 1974-75 para a capacidade do Estado português de existir como entidade livre, dispor dos seus negócios e desenvolver política independente – ou seja, no fundo, até mesmo para ser uma democracia e, assim, uma república governada por si mesma em observação e aplicação dos seus interesses? Esse é exercício a que não poderá fugir, na era de reafirmação das soberanias nacionais que se avizinha, nenhum português preocupado com o futuro do seu país.

Rafael Pinto Borges, Presidente da Nova Portugalidade