A propósito de Oscar e Valeria Martínez, pai e filha de 1 ano e 11 meses, que morreram afogados no rio Bravo quando tentavam chegar a nado aos Estados Unidos e cuja terrível foto os nossos mais ínclitos jornalistas consideram ser seu dever divulgar e expor ad nauseam (regra geral, são os mesmos que consideram ser seu dever nunca expor os corpos das crianças europeias mortas em atentados terroristas para não dar azo a putativos ressentimentos islamofóbicos), lembro estas notícias, que, longe de esgotarem o tema, cobrem um período que vai de 2012 a 2015, das quais os nossos mais ínclitos jornalistas, agora tão exasperados, não consideraram relevante dar então qualquer testemunho.
Que distingue, afinal, a tragédia icónica de Oscar e Valeria da tragédia não icónica dos milhares de Oscares e Valerias anteriores a eles, em tudo igual à deles, em tudo iguais a eles? A resposta, atroz mas veraz (e atroz porque veraz), cabe numa palavra: Trump. Não é a tragédia de Oscar e Valeria que importa: o que importa é que a tragédia de Oscar e Valeria possa ser imputável a Trump. Sem Trump, nenhuma tragédia humana icónica é noticiável. Sem Trump, nenhuma tragédia humana é sequer icónica. Sem Trump, nenhuma tragédia é sequer humana. Sem Trump, nem sequer é tragédia. Sem Trump, nem sequer é. A foto de Oscar e Valeria, antes de tudo, revela o que até aqui se velou: outros Oscares e outras Valerias, zelosamente condenados ao oblívio. Esta família morreu afogada no rio Bravo, rio da morte lembrada, as outras no rio Lete, rio da morte esquecida, um dos rios do Hades, rio do esquecimento, “léthê”, cujo oposto, na língua grega, é a palavra “alétheia” — que significa, não por acaso, verdade.
É por isso que, paradoxalmente, Trump é o melhor, e não o pior, que aconteceu a todos aqueles migrantes. Não fosse a existência de Trump (e, sobretudo, a obsessão que lhe está ancorada) e Oscar e Valeria, sufocados e abraçados, jamais teriam existido — senão enquanto lixo humano amontoado nas margens do rio do esquecimento. Como todos os outros Oscares e Valerias sufocados e abraçados antes deles, ter-se-iam afogado primeiro no Bravo e depois no Lete. Um segundo afogamento afogando para sempre o primeiro. Trump traz à tona os corpos afogados que esquecemos e empilhámos. Ao contrário do que nos é vendido pelos jornalistas comprados, e que se comprazem em confundir os deveres da honestidade deontológica com os prazeres da masturbarção autocongratulatória, Trump não é a escuridão a engolir a luz: Trump é a luz a romper a escuridão. Trump, neste sentido, é alétheia. Trump é a verdade. A verdade do ponto a que estamos dispostos a descer, da fossa em que estamos dispostos a chafurdar, quando nem as crianças sabemos poupar às nossas mais miseráveis canalhices. Trump tem este singular talento de nos revelar a verdade. De nos revelar o pior. De nós mesmos.
