1. Questão de princípio.

Não tendo posição sobre a independência da Catalunha (desde logo porque, ao contrário de muitos portugueses, não sou catalão), repudio, no entanto, por princípio, toda e qualquer tese que imponha ad aeternum aos vivos um governo dos mortos.

Nenhuma geração tem um direito perpétuo, e póstumo, sobre o futuro das gerações seguintes. Nenhuma geração tem o direito de outorgar a si mesma a penhora dos direitos das gerações futuras. O futuro não é hipotecável e todas as gerações, confrontadas com os desafios históricos que são os seus, e seus apenas, são legítimas titulares do direito inalienável a autodeterminarem-se segundo as preferências e aspirações da maioria dos seus membros historicamente convocados a pronunciarem-se para o efeito, mesmo que tal pronúncia implique, no limite, a desvinculação entre partes até aí afiliadas. Paine tem aqui (agora como outrora) razão sobre Burke e, mais ainda, sobre Jorge III: não há gerações honorárias a cuja vontade simultaneamente constituinte e vitalícia terão de sujeitar-se, até ao fim dos tempos, as gerações vindouras. O avô não pode determinar a vida do neto. As constituições são feitas para os povos, não os povos para as constituições. E a geração catalã actual tem, portanto, o direito de decidir se os mortos continuam ou não a falar em seu nome.

A última palavra deve ser dada sempre aos vivos.

2. Questão de meios.

Existem actualmente meios pacíficos e democráticos ao dispor dos catalães por via dos quais a sua manifestação de vontade de independência, em tese perfeitamente legítima, poderá ser devidamente apurada e, por conseguinte, lida pelos representantes unionistas e independentistas. Os independentistas, contudo, têm preferido a radicalização de rua e a violação da constituição espanhola justamente porque, de acordo com as últimas eleições regionais, os catalães estão mais divididos quanto à independência do que os independentistas gostariam.

O circo montado em Barcelona não passa de uma gigantesca manobra de diversão que visa escamotear a aferição eleitoral recente, que não justificou as reivindicações independentistas. Os independentistas não estão nas ruas porque são claramente maioritários: estão na rua justamente porque não são claramente maioritários e, por isso mesmo, precisam de um golpe de asa que lhes ceda nas ruas a Catalunha que perderam nas urnas. Os independentistas, ao arrepio das regras democráticas que legitimariam o mérito da sua aspiração nacionalista, estão a tentar criar uma Catalunha antes de criarem catalães.

17 de Outubro de 2019

Miguel Granja