Se o nível sopeiral de uns remete para um entendimento telenovelesco do embate de hoje, é evidente que o que está em causa nas eleições nos EUA não está nem no carácter dos candidados, nem nas alterações climáticas, nem no Covid, muito menos em derrames histéricos sobre o racismo, mas no futuro imediato da ordem mundial que uma elite dominadora quer ver transferida dos Estados para a alta finança predadora, se necessário pelo recurso às guerras ditas humanitárias.

O que salta à evidência é o lugar e o papel que Trump ocupa neste embate. Falou para o povo e como o povo – a tal “cesta de deploráveis” a que se referia Hillary Clinton – e liderou uma revolta do homem comum, marginalizado, alienado e empobrecido por décadas de governação anti-popular. A sua vitória em 2016 foi inesperada e fez soar todos os alarmes, pelo que nos EUA não houve transição alguma com a entrada de Trump na Casa Branca, tendo sido sempre obrigado a navegar à vista. Não fazendo parte do serralho dos profissionais da política, não fez os ritos de iniciação, não faz parte de sociedades secretas e é incontrolável, pelo que foi desde a tomada de posse objecto de uma jamais vista guerra sem quartel por parte das poderosas forças que desde há décadas exercem o domínio e a tudo se dispõem para o manter. Trump foi, até agora, a ruptura com o politicamente correcto que era, afinal, a justificação para o exercício do domínio cultural e psicológico de uma ínfima minoria.

Se Trump é um anti-imperialista americano, apela à fronteira, à soberania popular e nacional, ao valor do trabalho produtivo e à economia real, alinhado até numa lógica contra a escravidão dos migrantes e dos ilegais, contraria a hemorragia industrial – daí ter o apoio dos trabalhadores, dos empresários produtivos, dos militares e dos polícias – a oligarquia imperialista e “guerrista” dos neo-conservadores das guerras neo-coloniais, no poder deste Reagan, mais o “Estado profundo”, o complexo industrial-militar, a high tech, tudo farão para retomar os instrumentos que lhes facultem exercer legalmente o direito da força.

É essa a leitura que se deve fazer destas eleições. Veremos quem ganha e se ao poder regressa quem vai inapelavelmente lançar em mais guerras de desgaste o já vacilante poder dos EUA, ou se o país caminha para um tempo de reconstrução, deixando de ser agente de instabilidade planetária e mercenário de interesses que são contrários aos do povo americano.

Miguel Castelo Branco, Historiador.