Com a tácita licença do leitor, permito-me abrir um parêntese nas transmissões em direto de Budapeste. A um andarilho, tal como a um pícaro, perdoa-se um sem-número de travessuras, virar a vida do avesso, dando-lhe um redobrando significado. A incursão não nos leva a um lugar distante, conduz-nos até Toledo, coração da península, fortaleza à prova do tempo, não me alongando de momento sobre a cidade que é como um templo a céu aberto, sob pena de não lograr a empresa a que este artigo me incumbe: aludir levemente à célebre cultura do mañana em Espanha, a partir dum breve apontamento de viagem.

Reza a antiga dica que, seja em excursão, seja no quotidiano, são de evitar restaurantes às moscas ou frequentados maioritariamente por turistas. A dita não tive eu em mente quando, ao ver pimientos padrón e pinchos de tortilla na ementa, me precipitei de estômago em riste, para um amontoado de mesas vazias.

A somar às incertezas, a camarera aka cozinheira tinha cara de Chinesa, ou dalgum país asiático capaz de competir com Pequim num concurso de carne caninas ou espetadas de escorpião (ou talvez fossem gafanhotos – estes bichos, uma vez cozinhados, são praticamente indiscerníveis). Para meu espanto, quando pedi a janta (vide parágrafo anterior), a camarera não só foi simpática, como sorriu com notória sinceridade, desenhando um semblante que nada tinha de similar com o fotografado e facebookado pelos neo-hippies nas Indonésias deste mundo. É, de fato, fascinante como os expats se aculturam, sem que para isso haja voluntário esforço. Espanha, por exemplo, detentora duma energia contagiante, consegue transformar a típica carrancuda camarera Asiática numa criatura bem-disposta.

Imerso na supracitada reflexão, não dei conta da entrada duma catrefada de clientes no estabelecimento. Estariam interessados em ver uma Chinoca com modos? Fazer do fenómeno uma InstaStory? Não creio, dada a esfaimada pressa com que pediram os bistecs & ca. Afinal – eis o verdadeiro motivo – já passavam das oito, hora de começar em pensar na paparoca.

A propósito, jamais me irei esquecer duma viagem-relâmpago de Barcelona a Palma de Mallorca. O voo atrasou-se umas boas horas, obrigando o piloto a pôr o turbo, demorando a viagem mais a descolar e a aterrar, do que propriamente no percurso. Preocupado com o adiantado da hora, entretanto alinhado com os horários europeus (aculturação), enviei mensagem ao meu “amigo Balear”, dizendo que iria encher o bucho com uma baguete de manchego. “Tranquilo”, lembrou-me, por estas terras tapeia-se até perto da meia-noite.

Acrescente-se outro atónito a esta história com várias histórias dentro, o hóspede da pensão onde pernoitei em Toledo. Incrédulo por, terminado o desayuno, se ver obrigado a um compasso de espera, para que abrissem os museus cá do sítio, lá pelas 10 horas da matina.

Em Espanha as manhãs são lentas (podia aqui evocar a deslumbrante experiência da aurora, há uns bons anos atrás, no porto de La Gomera) e começam tarde (também aqui poderia evocar a anfitriã do Airbnb em Barcelona, a desculpar-se por colocar termo à boa da conversa, receando não acordar cedo no dia seguinte, às 8 da matina).

A cultura do “mañana”, apregoada pela Merkel & Ca. (isto tinha que ter o seu quê de político), é um mito. Como todos os mitos, tem o seu quê de verídico. Mas está mais relacionada com o começo tardio dos dias em Espanha, do que propriamente no deixar para amanhã.

Em Portugal não se deixa para amanhã, deixa-se andar. Mas de Portugal falaremos no próximo artigo. Até lá, à falta de panegíricos em palavras para Toledo, ficam algumas fotos.

Vítor Vicente